São mais de 50 imóveis do Estado, 14 deles localizados em Lisboa e no Porto, entregues pelo primeiro governo de Costa a grupos hoteleiros, maioritariamente nacionais, para reabilitar. Não para criar habitação para as famílias, no âmbito da declarada “urgência” num “muito pressionado” mercado da habitação que o governo apoiado pela geringonça via com preocupação, mas para ali fazer nascer novos hotéis.

Lançado em 2016, quase em simultâneo com o Fundo Nacional de Reabilitação do Edificado (FNRE), o Programa Revive avançou com 33 imóveis, sendo que numa segunda fase entraram mais 16 e depois mais dois, num total de 51 edifícios do Estado. E ao contrário do megainvestimento de 1.400 milhões de euros anunciado pelo PS e parceiros de geringonça (financiados pelo Fundo de Estabilização Financeira da Segurança Social) para abrir 7.500 casas com renda acessível a famílias e estudantes, que nunca saiu do papel, o Revive rendeu.

Mais concretamente, nasceram dezenas de concessões de projetos turísticos a 50 anos, com os quais o Estado arrecada cerca de 2,5 milhões de euros por ano. Do plano para a habitação, nasceram zero casas. Mas só contando com os 14 imóveis que António Costa entregou a hotéis em Lisboa e no Porto, somam-se já 619 quartos. Para turistas, claro está.

Apesar de ter acabado de fazer aprovar o Mais Habitação, em nome da “maior crise habitacional de sempre”, forçando proprietários privados a pôr as suas casas no mercado regular do arrendamento e acusando o Alojamento Local de contribuir para a gentrificação das cidades, o Revive não foi abandonado em nome de soluções habitacionais.

Abandonado, subutilizado ou devoluto, o património público continua a ser disponibilizado para fins turísticos ainda agora.

Ainda a 21 de junho deste ano, na véspera de o Movimento Casa Para Viver trazer à rua nova concentração pelo direito à habitação e entregar na Assembleia da República uma lista de exigências contra “a especulação dos senhorios e proprietários”, o governo anunciava “um novo impulso no Programa Revive”, “concedendo uma nova oportunidade a imóveis em adiantado estado de degradação”, descrevia então o secretário de Estado do Turismo, Nuno Fazenda.

“O governo avança com a III fase do Programa Revive, promovendo a afetação de um novo conjunto de imóveis, num total de 15, tendo em vista a prossecução dos principais desideratos da salvaguarda e valorização do património público com valor patrimonial e do seu aproveitamento económico e turístico”, lê-se na comunicação feita pelo governo a 21 de junho.

Iniciativa conjunta dos ministérios da Economia, da Cultura e das Finanças, o Programa Revive prevê, para edifícios do Estado – que vão de antigos mosteiros a quartéis ou palacetes em estados de conservação que variam entre as ruínas e o mero mau estado resultante do abandono e falta de cuidados de manutenção do edificado público – concessões turísticas de 50 anos e “uma renda mínima anual de 13.800 euros”.

Aos privados que ficam com a exploração cabe o investimento de reabilitação, estimado em cerca de 130 milhões de euros, além de uma renda paga ao Estado, que resulta em cerca de 2,5 milhões por ano. Receita que se prevê que aumente conforme se esgotam benefícios e se aumenta o número de edifícios do Estado concessionados para fins turísticos.

Zonas de contenção… mas pouco
Em plena zona de contenção para alojamento local (AL), o antigo Quartel da Graça, em Lisboa, é apenas um dos exemplos de edifícios públicos entregues a grupos hoteleiros.

Nos mais de 15 mil metros quadrados de espaço em que se ergue o edifício à beira do Miradouro da Graça, vão ser abertos cerca de 120 quartos, prevê o projeto publicado no site do Revive. Para o local está previsto um hotel de 5 estrelas, fruto de um investimento de 30 milhões, e que permitirá ao Estado recolher, findos os primeiros quatro anos de contrato, cerca de 1,8 milhões de euros em renda anual.

Onde até há um par de anos funcionavam serviços do Ministério da Defesa Nacional vão nascer outros 120 quartos de hotel, a abrir quando estiver cumprida a reabilitação do Paço Real de Caxias, com vista mar e uma área de construção total de perto de 6 mil metros quadrados.

Também na Zona Especial de Proteção de Monumento Nacional há oferta turística nova a caminho, com o patrocínio do governo. É o caso do edifício pombalino que faz esquina entre a Rua da Prata e a Praça do Comércio, em plena zona de alta pressão do gentrificado centro histórico da cidade.

Poderia ter sido aproveitado para abrir casas para famílias ou até para alojar estudantes, dando continuidade à tradição intelectual que por ali se espalhou nos primeiros anos de 1900, mas o edifício que se estende acima do Martinho da Arcada – onde se sentaram “Almada Negreiros ou Mário de Sá Carneiro, e onde Fernando Pessoa escreveu grande parte dos seus poemas”, conforme lembra a página do Revive – vai mesmo receber apenas turistas, num total de 30 quartos de hotel.

Outros dois exemplos, estes a norte, são o Palacete Conde Dias Garcia, em São João da Madeira, para o qual estão previstos 70 quartos, e o Palacete Viscondessa de Santiago do Lobão, no Porto, ainda parcialmente utilizado pelo Instituto dos Serviços Sociais – “ali funcionando um centro de reabilitação para jovens adultos portadores de deficiência motora e intelectual carenciados”, lê-se na descrição do Revive, que aguarda concorrentes a assumir o espaço.

Negócios do Estado além do Revive
A oferta do Revive é ampla e estende-se por todo o país, bem além dos mais de 600 quartos de hotel já previstos para as áreas da Grande Lisboa e Grande Porto, onde os preços da habitação mais aumentaram nos últimos anos. Arrendar um quarto para viver em Lisboa já custa em média 550 euros e no Porto chega aos 415 euros.

Ainda assim, e apesar da repetidamente anunciada emergência em resolver o problema da habitação no país – depois de uma década em que se construiu, em média, 17 casas por ano, de acordo com os números do INE -, a opção do governo não é a de dedicar a totalidade do parque imobiliário público a criar oferta habitacional.

Na verdade, nem é apenas através do Revive que Costa continua a entregar parte do edificado que tem sob gestão a projetos turísticos. Disso mesmo é exemplo o antigo Hospital do Desterro, vendido no ano passado a um grupo para desenvolvimento turístico pela Estamo, a imobiliária do Estado. Cerca de 10,5 milhões de euros, apenas mais um milhão do que o preço pelo qual a imobiliária estatal o comprou, foi quanto o negócio rendeu aos cofres públicos.

Quartos de hotel, área de restauração e espaços de lazer são os planos projetados para os xx metros quadrados que se fixam em plena Avenida Almirante Reis, no edifício que deixou de servir como hospital em 2006, comprado pela Estamo por 9,24 milhões de euros e acabou vendido em 2022, após mais de 15 anos a degradar-se nas mãos do Estado.