Sou filha da doença mental. Cresci na fragilidade dos seus braços, encostada aos mimos dos meus avós. Tinha 26 anos quando internaram a minha mãe na Casa de Saúde da Idanha, um dos lugares onde, como diz um amigo, se escreve Amor com letra grande. Percebi, no tempo certo, que há um mundo demasiado sensível e perigoso dentro das nossas cabeças que merece ser cuidado, tratado.
Talvez esperassem que escrevesse sobre a crise nas urgências de obstetrícia, mas a verdade é que sempre me dei mal em nadar a favor da corrente, quando o mundo se conjuga numa força mais mecânica do que racional. Talvez me quisessem ler no espaço dos lugares-comuns que têm enchido os jornais e as televisões agora, com anos de atraso, como se todos tivessem chegado ontem para ver os problemas do SNS por um pequeno e único buraco na fechadura. De um dia para o outro, felizmente, apareceu gente mais do que suficiente para lutar com energia e empenho em nome das grávidas, das mães e dos pais que tremem perante as dificuldades de acesso aos serviços de urgência.
Permitam-me, então, que olhe o sistema de saúde pelos olhos de quem se sente profundamente sozinho, perdido, em busca permanente de um sentido que se dissolve em ansiedade, pânico, escuridão. Quero escrever sobre a tristeza profunda, que neste país é coisa de rico. Os pobres não têm direito a problemas de saúde mental - basta olhar para os tempos de espera, por exemplo, para uma consulta de psiquiatria no serviço público. Se for no Hospital de Santa Maria, em Lisboa, um doente prioritário vai ter de esperar 56 dias, quase dois meses; no São João, no Porto, são 97 dias, e em Coimbra 45.
Alguém tem noção do que é viver dois dias seguidos mergulhado no vazio? No nada? Numa profunda dor que nos leva ao abismo? No mundo da doença mental, a espera é um passaporte para o inferno, um vaguear constante entre o ir e o ficar. Durante os dias quentes da pandemia, várias foram as vozes que surgiram a alertar para o drama deste tipo de patologia. Sim. Estamos a falar de doença, e não de estados de alma. As doenças diagnosticam-se e tratam-se. É por isso que o ataque ao drama da doença mental só será eficaz com o reforço e reorganização dos meios humanos disponíveis.
Hoje, mais do que nunca, enfermeiros especialistas em saúde mental, psicólogos e psiquiatras devem construir uma rede forte que começa nos cuidados de saúde primários, com triagem séria e encaminhamento célere. Como em qualquer doença grave, perder tempo é correr riscos desnecessários. A doença mental não escolhe idade ou condição socioeconómica, vive envergonhada no silêncio do estigma. É por isso que o poder político não lhe tem atribuído o devido valor na listagem de prioridades. É preciso lutar, de uma vez por todas, para que o tratamento da doença mental não esteja dependente da abrangência do seguro de saúde ou da capacidade para pagar um tratamento numa clínica privada, lá longe do mundo de todos os dias, onde os vulneráveis acabam a dormir na rua ou a colocar um ponto final no sofrimento porque se cansaram de viver.
Sou filha da doença mental. A minha mãe adoeceu quando eu tinha um mês e meio. Quero para as mães e os filhos dos outros aquilo que consegui para a minha. Um lugar de Amor, com letra grande, com profissionais de excelência, acompanhamento diário e tratamento eficaz. Mas quero esse cuidado para todos, disponibilizado pelo Estado, a quem entregamos parte da nossa vida em impostos. É por isso que estou disponível para discutir os problemas estruturais do SNS, sem tabus, e sem que essa discussão esteja condicionada a prioridades que não colocam o doente no centro do debate. Aprendi, como enfermeira, que é ele o foco da minha acção, do meu conhecimento e amor profissional. Não desisto de ninguém que precisa do meu cuidado e, talvez mesmo por isso, não aceito que o Estado desista de alguns doentes, sobretudo daqueles que se sentem mais sozinhos e abandonados nas esquinas daquilo a que alguns ainda chamam loucura. Loucos somos todos, sobretudo aqueles que desistiram de escrever Amor com letra grande, em particular no sector da saúde.