Na comédia negra “Don’t Look Up” (“Não Olhem para Cima” em Portugal), dois astrónomos montam uma enorme campanha mediática para alertar a humanidade para a aproximação de um cometa que destruirá o planeta Terra. Não obstante os melhores esforços, os astrónomos não são levados a sério por uma sociedade obcecada por temas mais absorventes, como as trends do dia nas redes sociais. Os frustrados astrónomos são até menosprezados pela Presidente dos Estados Unidos que, preocupada com as sondagens, considera não ser oportuno tentar resolver um tema com tamanha carga negativa tão perto de eleições. Numa tentativa de desacreditar a urgência de encontrar uma solução para um problema tão dramático, os negacionistas do evento catastrófico criam o hashtag #DontLookUp, oferecendo, assim, a sua incrível e inusitada resposta para o alerta. Importa dar conta de que, não obstante os tons leves projectados pelo seu prisma cómico, o filme traça um retrato sombrio e actual das sociedades ditas ocidentais - não só da americana -, tantas vezes alheadas das questões verdadeiramente relevantes, em que tudo se dissipa na inexorável voragem da espuma mediática de cada dia.
E eis que chegamos a Portugal, onde proliferam as chamadas de atenção para os problemas alarmantes do país - embora nenhum deles seja ainda um cometa - sem que daí resultem acções concretas e eficazes para os enfrentar. Qualquer semelhança com o retrato do filme não será pura coincidência. Poderia referir vários problemas inquietantes hoje esquecidos numa miríade de gavetas de outros tantos ministérios, mas elenco a gravíssima crise de sustentabilidade demográfica. Sendo um problema grave por si só, a sustentabilidade demográfica está ainda na origem de outros problemas sérios, como a sustentabilidade dos sistemas de protecção social, mormente a Segurança Social e o Serviço Nacional de Saúde.
A sustentabilidade demográfica, que é conhecida e debatida há mais de duas décadas no país, é um problema estrutural e, consequentemente, não se resolve com medidas avulsas ou conjunturais. Existem estudos sérios, extensos e competentes, feitos por diferentes instituições da sociedade civil, em que se analisa detalhadamente o problema e se propõem diferentes caminhos e soluções. Entre estes estudos destaco dois: o “Foresight 2030”, da Fundação Calouste Gulbenkian, e o “(Re)birth”, da Plataforma para o Crescimento Sustentável. No estudo “Foresight 2030”, que vai beber alguma da informação que utiliza ao “(Re)birth”, estima-se que em 2030 estarão já consumadas algumas alterações particularmente alarmantes, designadamente: (i) teremos três vezes mais idosos (>65 anos) do que jovens (0-14 anos) e adultos activos mais velhos, (ii) a população jovem e adulta irá reduzir em número e peso percentual de forma muito significativa e (iii) a população muito idosa (>85 anos) irá triplicar. Desta informação e de um vasto manancial de outros dados e análises, cujo espaço e o escopo do artigo não permitem aqui partilhar mas que poderão ser conhecidos através da consulta dos referidos estudos, resulta que o rácio activos/inactivos será alterado de forma que comprometerá a sustentabilidade do sistema, mesmo que a idade de reforma continue indexada ao aumento de esperança média de vida e com o contributo migratório. Note-se que mesmo que o país faça as restantes reformas estruturais que se impõem para, nomeadamente, sair do crescimento anémico de que padece desde, pelo menos, 2000, e que essas reformas sejam bem-sucedidas, isso de pouco nos valerá se o cenário demográfico for o descrito. Numa semelhança confrangedora com a comédia negra que serve de título a este artigo, os partidos não foram capazes até hoje de construir entendimentos mínimos sobre aquilo que será necessário fazer. Repetindo o mesmo comportamento que nos trouxe até aqui, em que cada partido se foca exclusivamente na refrega político-partidária, tendo como principal vector orientador das suas acções as tendências das sondagens das próximas eleições, chegaremos aos mesmos resultados: o agravamento da sustentabilidade demográfica do país. A solução só poderá ser encontrada se os diferentes actores políticos e a sociedade civil construírem, em conjunto, os compromissos necessários para se chegar a uma solução estrutural para a crise demográfica. Se nem esse compromisso formos capazes de construir, restar-nos-á o hashtag “Não olhem para cima nem para o futuro de Portugal”. Pode ser que, desta vez, acabe bem.