Senado

Da “democracia genuína”

Nuno Sampaio


Um dos efeitos colaterais da invasão e da agressão da Rússia à Ucrânia é o avolumar da percepção de que estamos a assistir a uma batalha à escala global entre as democracias e os novos autoritarismos. Uma das questões que mais perturbam Vladimir Putin é uma integração da Ucrânia na Europa das democracias liberais. Ter uma democracia de sucesso na Ucrânia é, para Putin, um pesadelo. Além de boicotar os seus sonhos imperiais, é ter à porta de casa o que considera ser um modelo decadente e não muito apropriado para os povos eslavos e, certamente, um péssimo exemplo para o povo russo.

No dia 25 de Março de 2022, o Presidente dos Estados Unidos da América deslocou-se a uma base militar na Polónia, a cerca de 70 km da fronteira com a Ucrânia, e nas palavras que dirigiu aos militares lançou a questão: “Então, a pergunta é: quem vai prevalecer? As democracias vão prevalecer - e os valores que partilhamos? Ou as autocracias vão prevalecer? E isso é realmente o que está em jogo.”

A rivalidade entre democracias e regimes autoritários não é propriamente uma novidade no discurso de Joe Biden. Aliás, o regresso de uma visão normativa dos Estados Unidos como líder de uma comunidade internacional de democracias é uma das marcas da sua presidência.

A discussão sobre os vícios e as virtudes dos regimes é tão antiga como a história do pensamento político. Mas uma das maiores provas do sucesso da democracia na batalha das ideias é a forma como mesmo aqueles que não a professam procuram invocar a sua legitimidade.

Escassos 20 dias antes da invasão da Ucrânia, os Presidentes da China e da Rússia encontraram-se em Pequim e divulgaram uma declaração conjunta sobre a “entrada das Relações Internacionais numa Nova Era e o Desenvolvimento Sustentável Global”. É importante ler e reler este documento na íntegra, o que, aliás, pode ser feito, por exemplo, numa versão em inglês disponibilizada na página oficial do Kremlin. O primeiro ponto da declaração é dedicado às históricas virtudes democráticas da República Popular da China e da Federação Russa. Ao longo de vários parágrafos é explicado o entendimento de que a democracia é um valor humano universal, sobre o qual não pode ser imposta uma visão hegemónica. No final, os dois Estados declararam que “estão preparados para trabalhar em conjunto com todos os parceiros interessados em promover democracia genuína”.

Além do entendimento de que cada país tem direito à sua democracia tendo em conta a sua história e cultura e que a defesa da democracia e dos direitos humanos não deve ser usada para colocar pressão sobre outros países, pouco mais é especificado sobre em que consiste a “democracia genuína”. Ironicamente, poderíamos saudar esta visão pluralista do conceito de democracia. Mas a verdade é que, por mais odes que façam à participação do povo no governo e ao desenvolvimento e bem-estar das populações, estes regimes não passam, clamorosamente, no mais simples teste democrático.

O problema não é o de uma visão plural do conceito de democracia, a questão é que não há democracia sem pluralismo. Não há democracia sem direitos iguais de participação política de todos os cidadãos, o que inclui o direito à contestação e a possibilidade de substituir governos através de uma competição livre. Como sintetizou Robert Dahl, não há Estados democráticos sem: (1) representantes eleitos; (2) eleições livres, justas e frequentes; (3) liberdade de expressão; (4) informação alternativa; (5) autonomia de associação; (6) cidadania inclusiva. Ou seja, o teste ácido às democracias não é apenas o da participação dos cidadãos, mas também da natureza dessa participação. Só com a existência de condições objectivas de os governos serem livremente contestados e disputados em eleições competitivas e livres é que estamos perante um Estado democrático. Podem persistir as tentativas das autocracias de se apropriarem da palavra e até as de construção de um conceito de democracia iliberal, mas sem liberdade não há democracia. A partir daqui podemos discutir definições mais ou menos extensas de democracia, mas, sem isto, falar de “democracia genuína” é apenas mais uma falácia.