Perante a desgraça, corremos todos desenfronhados, a fugir da nossa culpa, à procura de um rosto a quem apontar a nossa ira, um espaço que nos permita esconder a vergonha desta alma que se inquieta à velocidade da luz mas se desliga, esgotada ou embrenhada em qualquer nova história.
As análises são normalmente feitas em cima do joelho e os julgamentos instantâneos, subvalorizando factos mas transbordando de certezas construídas pelo (i)mediatismo do tema, que nos apresenta fragmentos de uma história que o nosso cérebro não resiste a completar e construir um enredo qualquer. A dúvida, a incerteza, a ausência de uma resposta é demasiado incómoda e expõe a vergonha da nossa inércia enquanto cidadãos.
A Jéssica, a Joana, a Fátima, a Maria Isabel, a Valentina... e tantas outras crianças que foram invisíveis para o sistema (e para todos nós), até ao dia da sua morte, têm algo em comum.
O que tinham em comum é o nosso Sistema de Promoção e Protecção de Crianças e Jovens em Perigo. Este sistema que, quando é discutido - na maioria das vezes, na procura de uma cara seja numa Comissão de Protecção de Crianças e Jovens (CPCJ), seja no sistema de justiça -, não é discutido na sua génese, não é analisado no seu formato nem tão-pouco na sua origem.
O sistema foi pensado a partir da comunidade, colocando em primeira linha de resposta a própria comunidade. Orientado pelo princípio da intervenção mínima, apenas perante a ausência de resposta por parte da comunidade é que o sistema, numa lógica piramidal, exige a intervenção das entidades com competências em matéria de infância e juventude, por exemplo prevenindo ou actuando sobre o risco (a pobreza, entre outros) e não deixando que a situação se transforme em perigo.
Na incapacidade de resposta destas entidades, nomeadamente por ultrapassar a sua competência, devem então intervir as CPCJ, sem prejuízo de qualquer entidade ou pessoa sinalizar, sempre que entenda existirem indícios de perigo, uma situação a estas comissões.
Mas, afinal, o que são estas comissões? São instituições não judiciárias que integram a administração independente do Estado e que, por isso, têm autonomia própria (cada uma delas), livres de orientações nos casos concretos e da tutela do Estado. Mas com o objectivo de prosseguir os fins do Estado, defendendo o superior interesse das crianças e dos jovens e protegendo-os de perigos que coloquem em causa o seu desenvolvimento ou até mesmo a sua vida.
O Estado delegou a protecção das suas crianças e jovens nestas entidades que funcionam sem tutela de qualquer organismo público. Todavia, o modo como estas entidades funcionam sem meios técnicos, sem recursos humanos especializados, sem formação adequada e sem qualquer orientação, poderá conduzir a que consideremos que o Estado não delegou a protecção de crianças e jovens; antes se desresponsabilizou dessa tarefa pública fundamental.
As CPCJ, cada uma das 311 existentes, são independentes no seu funcionamento administrativo, na escolha dos seus membros, nas suas garantias estatutárias, na composição dos seus órgãos, na vinculação das decisões, apenas subordinadas ao que diz a lei, nomeadamente quando afirma que na sua composição tem de estar presente um membro de determinadas entidades públicas (município, Segurança Social, Ministério da Educação, Ministério da Saúde, IPSS ou ONG, IEFP, forças de segurança e associações locais de relevo), sendo que cada entidade designa e assume os encargos do seu membro, que no caso de integrar a comissão alargada, aquela que trabalha na prevenção, no mínimo tem de estar disponível para a comissão oito horas por mês. Sim, apenas oito horas por mês!
Já na comissão restrita, aquela que avalia, analisa e decide o caso concreto, os seus membros também podem, e assim será na maior parte das vezes, estar em part-time. Espantem-se: o próprio presidente da comissão só está a tempo inteiro quando no território de actuação existem cinco mil crianças ou mais entre os zero e os 18 anos.
Ora, não podemos deixar de colocar a questão óbvia. Sem formação especializada nesta matéria, trabalhando em regime de part-time, estarão os profissionais destas áreas capacitados tecnicamente para decidir sobre a retirada de uma criança? Capacitados para avaliar o contexto familiar? Bem sei que a decisão é de toda a comissão, mas os “olhos” de quem vê e os “ouvidos” de quem recolhe a informação são determinantes e não podem deixar de estar tecnicamente habilitados e profundamente treinados.
Dito isto, não restem dúvidas de que estes profissionais, na sua grande maioria, mesmo que desgastados pela exposição que este trabalho provoca, dedicam-se, fazem formação por conta própria, muitas vezes abdicando da sua vida pessoal. Mas este sistema de pirâmide não acaba aqui: quando os pais ou responsáveis não concordam com a intervenção ou incumprem os planos estabelecidos, os casos são enviados para tribunal, e só aqui começa a intervenção judicial, assessorada muitas vezes pelas equipas multidisciplinares de apoio aos tribunais, mas com as crianças sem a representação de um advogado.
O que estas crianças e tantas outras tiveram em comum é um sistema de promoção e protecção em part-time numa importante parte da “pirâmide”, que sobretudo funciona como uma estratégia para desonerar o Estado da sua responsabilidade, sobretudo financeira.
É este o sistema de promoção e protecção das crianças e dos jovens que queremos?