É de sorriso rasgado que nos recebe na sua casa para uma conversa longa sobre a entrada agridoce na política portuguesa. O colonialismo, o racismo e a sua visão de Portugal são temas incontornáveis. Mas há também alertas sobre a desorientação da esquerda perante o avanço “absoluto” de ideologias outrora vencidas.
A maior curiosidade de toda a gente é saber o que é feito da Joacine Katar Moreira após ter saído do Parlamento. Como são agora os seus dias?
Tanto os meus dias como as minhas noites têm sido de muito oxigénio. Andei durante este ano a oxigenar-me. Precisava de me oxigenar porque foram dois anos e meio muito exigentes, muito violentos. Dão-lhe o nome de escrutínio, mas nunca vi nada assim. Fui absolutamente descaracterizada. E isso, obviamente, teve impactos em mim, na minha filha, mas também nos meus familiares e amigos. Todos eles sofreram imensamente. Na altura, não tinha necessariamente consciência [disso]. Íamos falando, mas só depois de me ter ido embora é que entendi o alcance de toda a violência. Comecei a ouvir os desabafos da minha mãe, do meu pai, dos meus irmãos, dos meus tios, dos meus primos, e entendi que isto não me afectou unicamente a mim. Mas, simultaneamente, olho para esse tempo com alguma emoção e repetia tudo novamente.
Repetia porquê?
Entrei na política para ajudar um amigo a ser eleito. Não entrei para ser eleita nem estava à espera de ser eleita. Quando o meu antigo partido opta por colocar-me como número um, entrei numa ansiedade enorme e avisei-os que não era esse o meu desejo. Mas, a seguir, também achei que era uma oportunidade de induzir as mudanças e as transformações que reclamava. Era uma inconformada. E andava a incentivar os afro-descendentes a entrarem na vida política porque achava que era com uma representatividade étnico-racial que algumas neuroses da nossa sociedade poderiam ser ultrapassadas. Mas organizei a minha existência para ser universitária, académica. O meu maior desejo era dar aulas numa universidade - o meu maior e único desejo.
A política foi, então, um acaso.
Apareceu por acaso. Por enorme incentivo de amigos. Mas a óptica não era eu ser eleita. Era entrar para ajudar outros a serem eleitos. Faço análise política, histórica e institucional. Fui requisitada para auxiliar alguém, mas acabei por ser eleita num ambiente em que já não havia uma boa relação entre mim e dois elementos do partido [Livre]. Não era amiga de praticamente ninguém do partido. As pessoas que eram minhas amigas, e que fui auxiliar, foram depois as que desejaram o meu afastamento.
Uma dessas pessoas é Rui Tavares?
Exactamente. Ele é que controlava a estrutura partidária. No momento em que ele e mais uns outros almejaram o meu afastamento, estava completamente isolada. Não tinha ninguém. Foi um choque enorme. Mas foi um choque que se iniciou nas eleições europeias. Entrei para auxiliá-lo a ser eleito. Ele era o candidato número um, e eu número dois.
Até aí, a relação entre os dois era boa?
Ainda era. Mas, nas europeias, houve várias histórias que não entendi, entre elas a de um cartaz em que eu aparecia a olhar para ele. Disse-lhes que era uma mulher feminista, negra e interseccional e que não olharia para homem nenhum. Portanto, ou me metiam a olhar para o eleitorado ou, então, ia-me embora. Insistiram imenso, diziam ser original, mas estava preocupada com o meu trabalho, com o meu activismo. Tinha acabado de criar o Instituto da Mulher Negra e colocaram-me ali numa postura de subserviência. Não queria aquela imagem. Foi aí que nós os dois azedámos. Mostrou-se alguém com umas maneiras de estar e de dizer... e foi assim que avançámos para as legislativas.
As coisas já tinham azedado e, entretanto, foi eleita. Não houve uma tentativa de sanar os ânimos para levar o mandato a bom porto?
Inicialmente, achei que haveria. Mas, ainda antes da minha eleição, quando se anunciava que havia hipótese de ser eleita, enviei-lhes um email em que lhes dizia: “Com este ambiente, e se eu for eleita? Como é que nos vamos orientar e relacionar?” Mal saíram as primeiras sondagens, não apareceu a minha imagem, aparece a imagem do Rui. Ele começa a dar entrevistas para a campanha. Questionei porque é que era ele. Eu era a número um, mas havia o número dois, o número três, o número quatro. O Rui não era candidato. Até teve a ideia de fazemos um outdoor em que estaríamos ele, eu e o candidato número dois. Recusei a ideia. Foi muita história. Naquela época, ninguém me quis ouvir. Havia uma onda, toda a gente entrou na onda. E, hoje, toda a gente me quer ouvir sobre o que houve.
E, em resumo, o que houve?
Acabei por ser eleita num ambiente e num partido com os quais não me identificava completamente. Nem eu com eles, nem eles comigo. Para me candidatar, tiveram de melhorar o programa, tiveram de inserir as minhas ansiedades feministas e antifascistas. Aceitaram calmamente todas as minhas sugestões e alterações. Mas, após a minha eleição, iniciou-se um movimento interno de indivíduos que não participaram na campanha, mas que vieram “resgatar o partido” - indivíduos que se tinham afastado, desistido, depois de anos sem conseguirem eleger. De repente, muitos deles regressaram para exigir a originalidade do partido, alegando que já não se identificavam, que o Livre estava muito radical e que eu era uma feminista radical. Hoje em dia, acho que foram chamados.
Foram chamados para quê?
Para ajudar à minha expulsão. Porque os outros não tinham maneira de dar a ideia de que não estavam a par de que eu era anti-racista, activista e feminista. Vieram com a legitimidade de serem fundadores. Queriam o partido de volta. O que estava em causa era: “antes de ela aquecer a cadeira tem de se ir embora.” Há SMS e mensagens no WhatsApp. A companheira de Rui Tavares esteve activíssima online a dar a ideia de que eu era maluca. De repente, veio a história do ego. Não havia mais por onde me atacar. Mesmo os órgãos de comunicação: vasculharam a minha vida inteira, foram às minhas escolas primárias, básicas, preparatórias, secundárias para ver o que os professores diziam de mim.
Acha que houve uma campanha generalizada contra si?
Não acho. Vivi isso. O que estava em causa era a construção da imagem de uma mulher narcísica, desequilibrada, ambiciosa, histérica, alguém em quem não se pode confiar. Sou uma pessoa certinha. Nunca recebi uma multinha. [risos] Não sabiam onde encontrar elementos. Sou irmã de onze, tinha de dar o exemplo. Não houve erros. Foi só trabalhar e universidade, estudar e orientá-los. Não houve margem para bebedeiras no Bairro Alto e por aí fora. Então, fizeram-me o que normalmente fazem a todas as mulheres negras com visibilidade: atacam a personalidade. Alguma vez ouviu comentários sobre um aspecto físico de um deputado ou de uma deputada? Nunca ouvi. Mas ouvi, por exemplo, Clara Ferreira Alves a dizer “ela é vaidosa”, ou Miguel Sousa Tavares, “ela é uma arrogante insuportável”. Sempre que se fala no meu nome, fala-se com algum asco. Comigo abriu-se uma auto-estrada de impunidade. Toda a gente dizia o que lhe apetecia. Até havia artigos em que se metia o meu nome no título para que os leitores lá fossem, mas nem eram sobre mim. O meu nome originava cliques, ansiedades, mas tinha de estar sempre associado a polémica - algumas verdadeiras mas mal interpretadas, como a história de que mandei chamar a GNR no Parlamento por causa dos jornalistas.
O que aconteceu nesse episódio?
Estava a dar uma entrevista para a Al-Jazira e tinha avisado o meu assessor de que não daria mais entrevistas aos meios nacionais porque deturpavam tudo, punham títulos horríveis que induziam em erro. Era insultada e ameaçada de morte nas redes. Decidi que não dava mais entrevista nenhuma. Mas a Al-Jazira já nos tinha enviado um email há imenso tempo. Estava a dar essa entrevista no Salão Nobre da Assembleia, onde normalmente há um indivíduo parado em frente, que não está fardado e, portanto, achámos que seria um funcionário. Quando os média nacionais descobriram que estava a dar uma entrevista, vieram todos ao molho. Quando saí, o meu chefe de gabinete disse-me: “Este senhor vai acompanhar-nos até ali.” Era um assédio enorme, entravam nos nossos gabinetes com câmaras. De repente, nas notícias: “Joacine chama GNR.” A minha primeira reacção foi dizer que não era verdade. Isto ainda aumentou mais o ódio dos média. Outro caso: uma jornalista, com quem conversei, fez um texto que ficou famoso em que escreveu: “Fui eleita sozinha.” Frase que nunca disse. Até porque evito dizer a palavra “sozinha” - é dificílima para mim.
A Joacine não foi eleita sozinha?
Ninguém é eleito sozinho. Que ideia é essa? Sozinha foi a palavra do ano, deu um alarido enorme. O Livre usou aquilo para me retirar a confiança política. Fartei-me de explicar. Já não sabia mais o que fazer, porque era falso. Conversei com ela. Disse-me que era o que estava subentendido naquilo que eu lhe tinha dito. Mas meteu entre aspas. Dá a ideia de que foi o que eu disse. O que eu disse foi que o partido não me apoiou. A coisa consolidou-se, toda a gente acha que disse aquilo. Houve mil casos.
O ambiente agravou-se e é então que se dá a retirada de confiança política.
Normalmente, digo que o ambiente não se agravou. Houve o cumprimento de um objectivo, que foi afastar-me. Organizavam assembleias, tinham os média todos à volta. Levava documentos a provar que o que me apontavam não era verdade. Não tinham maneira de me retirar a confiança. Mas era uma inevitabilidade, porque não aguentava mais. Eram eles de um lado, os média do outro, a Assembleia da República do outro. Era toda a gente. Mensagens e discursos de ódio. Arrasaram todos os meus esforços, todo o meu percurso académico. De repente, deram cabo de mim, da minha vida, das minhas expectativas. O único objectivo era que saísse. Eu insistia e dizia que os eleitores elegeram um programa anti-racista, uma mulher negra, alguém com as minhas características, e, por isso, não me ia embora. Só que isto, claro, origina ainda mais ansiedade e mais violência. Foi um escalar de violência. Obviamente que eu não sou um anjo. Também cometi erros, estava farta e exausta. Mas, no meio daquilo tudo, evitei usar discurso de ódio e entrar numa onda de desvario. Eu e os meus assessores combinámos que íamos trabalhar.
Nunca mais falou com o Rui Tavares?
Não. Nunca mais. É o estilo de indivíduo que atira a pedra e esconde a mão. Há os militantes do partido, depois, há a família e os amigos, que controlam o partido mesmo não militando. Eram esses também que andavam no Twitter a pedir para me retirar a confiança política, identificando os militantes. Nunca mais houve contacto algum entre mim, o Rui Tavares e os outros, que são os que agora estão na Assembleia da República com ele e os que estão na CML. São oito ou nove. Controlavam o partido há anos. Houve muitas pessoas a irem embora, muitas a não se identificarem. Já estava exausta. Avisei os meus assessores de que era melhor estar como deputada não inscrita, caso contrário, não iríamos trabalhar. E tudo o que fizéssemos iria ser abafado por contactos com os média e polémicas. Só desejava trabalhar, e conseguimos.
Sentiu-se mais livre depois do rompimento com o Livre?
Senti-me mais ou menos. Não foi automático. Havia impactos. Ainda continuava a haver boicote ao meu trabalho. Houve uma imagem que foi construída de alguém absolutamente inacessível, de alguém insuportável, com quem não dava para se relacionar. Essas ideias foram-se consolidando. Mas não deixei de estar com a minha liberdade. A ironia é que o ambiente nas ruas contrastava com o ambiente institucional, nos média e nas redes sociais. Nunca ninguém me olhou mal no autocarro ou no metro. Nunca. Pelo contrário, vinham dizer-me que era horrível o que me estavam a fazer. Pediam-me para não desistir. Havia muita amizade e reconhecimento nas ruas. Nos média, ódio total e desinformação absoluta. Nas redes sociais, ódio organizado e orquestrado.
Organizado?
Sim, porque acontecia à mesma hora em todas as redes. Vários indivíduos faziam os mesmos comentários em várias páginas, em vários posts. Percebe-se que há uma organização. Continuei com a minha vida normal, de ir ao hipermercado, ao hospital, ao centro de saúde. Portanto, isto não me desumanizou, não me fez andar escondida, porque sei a minha verdade. Não enganei ninguém. Já era uma activista conhecida. Tudo o que defendia era o que continuava a defender. Estava no programa: descolonização do conhecimento, descolonização da cultura, alteração da legislação. Cumpri o programa. Alegavam que não era suficientemente ambientalista. Se entrar na página da AR, tenho mais iniciativas ambientalistas do que anti-racistas. Mas como só interessava relacionar-me com o racismo e com a descolonização, foi-se omitindo. Até o caso de Aristides de Sousa Mendes: omitiu-se até à última hora que a iniciativa era minha. Houve uma omissão de muito do meu trabalho.
Apesar de toda a violência e das mágoas que porventura lhe ficaram, sente saudades do Parlamento?
Sinto. Não necessariamente do Parlamento, que é um edifício frio. Mas sinto falta do trabalho parlamentar, de responder às necessidades e de fazer iniciativas legislativas.
Depois de a AR ter sido dissolvida teve algum convite de outros partidos?
Tive.
Pode dizer quais?
Não.
O Bloco de Esquerda ou o MAS...? A Joacine apoiou, por exemplo, a candidata do MAS, a Renata Cambra, nas últimas legislativas. Via-se, por exemplo, num partido como o MAS?
[Risos] Nem o MAS, nem o Bloco, nem o PCP me convidaram, mas acho absolutamente normal. Nem achei que iriam fazê-lo. E, se me tivessem convidado, provavelmente não iria. Não houve expectativa da minha parte de que alguém me convidasse. Antes de me ter candidatado pelo partido Livre, um destes partidos contactou-me para me convencer a entrar. Na altura, dei-lhes a ideia de que não era meu desejo estar na vida política. E não era. Mas, a existir um partido, tinha de ser algo criado...
Por si? Ficou no ar a ideia de que a Joacine poderia criar um partido.
Sim. Porque a esquerda não acompanhou as minhas iniciativas legislativas anti-racistas, e isso foi um choque absoluto. Sou uma eleitora de esquerda, tenho muita fé na esquerda. Nas eleições presidenciais, normalmente votava PS; nas autárquicas, PCP; e, nas legislativas, Livre ou Bloco. Às vezes, nas autárquicas, dependendo dos candidatos, incentivava ao voto tanto no PS como no PCP como no Bloco. Nunca votei no MAS, mas achei a Renata Cambra uma lufada de ar fresco.
Mas existe ou não a intenção de criar um novo partido?
Neste exacto momento, não existe. Mas isso não significa que, de uma hora para outra, não mude de ideias radicalmente. [risos]
Chocou-a que Lisboa decidisse manter os brasões coloniais na calçada na Praça do Império?
Numa altura em que a conjuntura internacional dos países progressistas é a de iniciar acções de assumir a sua história colonial contra todas as suas dificuldades, violências e traumas; numa altura em que há homenagens às pessoas escravizadas e numa altura em que devia estar a fazer uma reconciliação com a sua história, com os povos colonizados, com a sua herança colonial - e não há reconciliação sem haver aceitação dos factos -, Portugal, ao invés de se elevar, de encontrar um caminho de descolonização que permita um assumir responsável do seu passado colonial, está num esforço de salvaguardá-lo, para salvaguardar todas aquelas neuroses do mito do império, do mito dos heróis, do mito de que não foram assim tão maus colonizadores, do mito do Estado Novo. Estamos a conservar todos os mitos coloniais, e exacerbados pelo Estado Novo, numa época de democracia. Ao mesmo tempo, não vamos retirar os brasões, vamos antes calcificá-los. Vamos cimentar todas as neuroses. É uma neurose, pois o império não existe mais.
Diria que há uma nostalgia colonial?
Não há uma nostalgia colonial. Isso era dantes. O que hoje há é uma ansiedade colonial, não é nostalgia. Há ansiedade colonial. Porquê? Porque é considerada uma época áurea da história nacional. Ainda hoje em dia, cada vez que existe a hipótese de Portugal se fazer representar artisticamente usando um símbolo qualquer, é sempre usada a simbologia colonial ou alusiva à época colonial, como as caravelazinhas. Dá a ideia de que não se fez mais nada. Hoje, em 2023, vamos representar-nos artisticamente com uma caravela e toda a gente acha isso natural.
E porque há essa ansiedade?
Há uma ansiedade colonial porque se acha que, sem essa história, não sobra nada. O que Portugal não entendeu ainda é que há histórias melhores para serem reificadas e que a história colonial é uma história de violência, subjugação, usurpação e extractivismo. Não é algo de que se possa somente orgulhar. Não digo que não haja orgulho em que um país pequenino tenha tido a audácia de ir para as Américas, África e Ásia. Não é isso. Houve avanços em termos científicos. Mas há omissão de toda a história desconfortável - da escravatura, do tráfico internacional de pessoas, que foi inaugurado por Portugal. Quando falamos disto, vem uma série de pessoas dizer que não se pode julgar o passado com os olhos de hoje. Se não se pode julgar, então também não se pode celebrar. E quando nos vêm dizer que na época era assim? Não era assim, não. Houve abolicionistas o tempo inteiro. Houve resistência. Há omissão do abolicionismo. Há omissão da história de resistência. De todas as coisas que não sirvam para enaltecer a empresa colonial.
O que é preciso para Portugal fazer as pazes com esse passado?
Precisa de reconhecer. Ainda estamos na fase do reconhecimento. Tem de reconhecer que inaugurou o tráfico internacional de pessoas. Tem de reconhecer que fez parte de uma história de desenraizamento e de desumanização. Tem de reconhecer que a maneira como conta essa história não é verdadeira. Ou é apenas em parte. Omite todas as outras. Há uma omissão absoluta de tudo aquilo que origina desconforto. E continuamos com estas histórias de calcificar os brasões e de criar o museu da Descoberta ou dos Descobrimentos, como se Lisboa não fosse já um museu colonial ao ar livre.
Quando esse tema foi discutido na CML, a propósito do voto de repúdio do BE, Carlos Moedas disse existirem forças políticas que pensam que apagar a História é o caminho para resolver os problemas do passado, defendendo que não podemos entrar num estigma de cancelamento da História. Percebe esta argumentação?
É uma argumentação muito inteligente, mas completamente falaciosa. Ninguém quer apagar História. Queremos aumentá-la. Eles é que querem omitir o que origina desconforto. Nós desejamos que esteja escrito nos manuais de História que não houve um encontro dos povos. Houve um encontro dos povos, mas foi um encontro desigual. Houve a desumanização. Desejamos que escravatura seja escrita com letra maiúscula, assim como Holocausto é escrito com ‘h’ maiúsculo. Foram milhões e milhões de pessoas desumanizadas. Desejamos que se pare a epopeia colonial e se fale dos impactos que a ideologia tem até hoje, especialmente na vida das pessoas racializadas. Mas estas pessoas só querem celebrar uma parte da História que dá jeito ao nacionalismo. Enquanto pessoa formada em História, tenho muito respeito pelo passado. Mas tenho mais ainda pela verdade. Aquilo que Carlos Moedas deseja é celebrar um passado que me desumaniza. Portanto, nunca posso fazer parte daquela celebração e nenhum democrata pode achar bem celebrar isto. Houve o 25 de Abril porque as pessoas desejavam viver em liberdade. Hoje em dia, não há cá odes na monumentalização de Oliveira Salazar. Alteraram-se nomes de ruas, nomes de pontes, caíram estátuas. Isso não é apagar? Não é apagar porque nos diz respeito. Mas a história colonial é a história da Europa, não é a história de África.
Há pouco tempo, o Governo anunciou que estaria a fazer a inventariação das obras com origem nas ex-colónias com o objectivo final de as devolver, mas defendendo que isso deve ser feito de uma forma discreta.
Aquilo que o ministro da Cultura deseja é implementar a minha proposta, que foi recusada, mas de forma silenciosa. É uma inevitabilidade. Já vários países da Europa iniciaram isso. E Portugal não pode estar alheio. Já fica mal nos encontros internacionais de museologia, de cultura, Portugal não ter nada a dizer sobre isso. Agora, agarram na minha iniciativa, que foi rejeitada, e obviamente que não me convidam para integrar isso porque querem demarcar-se de uma ideia de radicalidade e justiça histórica. Mas que façam, a ideia é esta. Mas não pode ser feito em silêncio. Temos de saber quem são os investigadores e as universidades que estão a trabalhar sobre isso. A inventariação das peças e obras iniciou-se antes de Adão e Silva, logo após a minha iniciativa ter sido rejeitada. Agora anuncia isto e alega que não é para aumentar a radicalidade na sociedade. Mas isto não é ser-se radical, isto é fazer a coisa certa. O actual ministério está a fazer a coisa certa, que é inventariar todas as obras oriundas das ex-colónias, entender o seu contexto e, a seguir, ver se estes países desejam pedir ou não a restituição.
A par de uma reflexão pública.
Absolutamente. Mas há o evitar político que só favorece a extrema-direita.
O ministro disse que quer evitar a polarização do debate. Admite que a polarização pode atrapalhar a reflexão histórica e social que deve ser feita?
Uma iniciativa destas sem abertura ao debate, sem o reconhecimento daquilo que é o espólio nacional e daquilo que não é, sem a contextualização histórica, sem o debate nas universidades e nas escolas, é uma iniciativa, mesmo assim útil, mas despida da sua alma. A polarização é necessária. Estamos numa altura em que não dá para evitar a polarização, com o avanço absoluto da extrema-direita e o ressurgimento de ideologias outrora vencidas.
Como olha para o surgimento dessas forças na Europa e em Portugal?
São forças que usam o sistema democrático mas são antidemocráticas.
Diria que a democracia está em perigo?
A democracia está em perigo, não é um dado adquirido, assim como todas as conquistas civilizacionais. Vemos o que acontece quando a extrema-direita entra no poder. Ainda recentemente, a questão do aborto nos EUA: lutou-se para que as mulheres tivessem a hipótese de fazer uma interrupção voluntária da gravidez, mas, à mínima hipótese, lá vêm impedir esse direito. Aqui caminhamos para a mesma situação, em que não há nada que esteja adquirido neste exacto momento. Com uma esquerda que se comporta como uma direita, com os outros partidos à esquerda a perderem eleitores e representatividade, e com a extrema-direita a usar formas de acção e de organização da esquerda, agora organizando sindicatos, manifestações e ocupando as ruas. As ruas eram da esquerda, o povo era esquerda. Devido exactamente ao medo da polarização é que a esquerda perdeu força. Na altura de condenar a entrada de um partido de extrema-direita no Parlamento, tanto a esquerda como a direita meteram os olhos numa mulher negra gaga. Eu é que fui o alvo. Esqueceram-se de que todos os ataques a alguém como eu, àquilo que represento, não me atingiam a mim, mas sim a hipótese de uma representatividade negra que fosse aumentando. Todos estes ataques ajudaram à retórica da extrema-direita.
Hoje em dia, os partidos continuam a dar esse gás ao Chega?
A oportunidade histórica de combatê-lo foi quando entrou na AR. Era o momento de alerta absoluto. Mas ocuparam-se com outras coisas. A esquerda, obcecada comigo - acham que lhes retirei o eleitorado. Havia a necessidade de me desautorizar politicamente para mostrar que o eleitorado errou. Devíamos ter estado todos unidos para combater a entrada de um partido de extrema-direita, com ideias xenófobas, racistas, mas não só. Não se deve resumir a extrema-direita ao racismo e à xenofobia. Deve-se também relacioná-la com o ultracapitalismo, com o empobrecimento, com a privatização do SNS, com o dar cabo do sistema de educação gratuito. Como é que não houve um alerta em Outubro de 2019? Tiveram oxigénio e recursos para se organizarem, alastrarem e se implementarem. E os média têm muita responsabilidade nisso. O que o Chega faz não tem originalidade nenhuma, fazer declarações o mais absurdas possível para se ocupar os meios de comunicação. Andamos de estupefacção em estupefacção até à vitória de uma ideologia fascista, racista, colonial, ultraconservadora e elitista. Estamos polarizados entre a extrema-direita e as suas ideologias e os valores da democracia. Não há diálogo ali. Não há.
O presidente da Assembleia da República tem lidado da melhor maneira com André Ventura no Parlamento?
A maneira como Ferro Rodrigues agiu não ajudou nada. Augusto Santos Silva vai protagonizando alguns momentos de lucidez democrática, mas precisamos de nos questionar: como é que um partido com estas características foi legalizado? Como é que continua a ter todo o apoio mediático? De onde lhe vêm os recursos financeiros? Fui eleita com 8 mil euros; Ventura foi eleito com meio milhão. É o medo da esquerda que origina ou facilita a consolidação das ideologias de extrema-direita. A esquerda não tem de ter medo, porque a esquerda é democrática. Tem a responsabilidade de lutar pela democracia, pelos valores da igualdade, da justiça, da representatividade. Uma esquerda com medo é uma esquerda que não está a fazer o seu trabalho.
Houve no início um dilema sobre se atacar André Ventura não seria estar a dar-lhe palco.
No início houve tolerância porque foram eleitos democraticamente. Queiramos ou não, o André Ventura não é um ovni. Era já um indivíduo das televisões minimamente conhecido. Mas a esquerda, quando decide não agir, não só se está a prejudicar a ela como também está a abrir alas para algo que não vai ao encontro do que a própria defende. A esquerda errou. No momento em que Ventura me manda para a minha terra, como é que o Parlamento não fez tal e qual aconteceu em França recentemente, quando um deputado negro foi mandado para a sua terra e isso foi um escândalo nacional? Foram logo tomadas diligências porque isso não se admite. Cá, os partidos de esquerda vieram avisar-me de que tinham decidido não fazer nada para não lhe dar palco. Lamento. Não é cruzando as mãos que se ganha a luta. No momento em que é necessário erguer-se, dizem que é melhor não, para evitar. Mas não evitaram nada. Não evitaram o aumento vertiginoso do partido de um para 12 deputados. Não evitaram a queda dos dois partidos de esquerda. Não evitaram rigorosamente nada. A esquerda tem de assumir que errou. O que não invalida que hoje se encontrem as estratégias para se relacionar com isto. Os erros do início não podem continuar hoje. A esquerda tem de se oxigenar e levantar as mãos.
E o que deve fazer para se oxigenar?
Passa pela mudança de líderes, que está a acontecer. É necessário uma esquerda que responda às pessoas. As pessoas estão desorientadas. Porque, embora se identifiquem com determinado partido, a seguir não sabem se devem elegê-lo. A esquerda não está a ser olhada como o espectro político que luta pelas pessoas. Tem de recuperar isso rapidamente.
O Governo será capaz de chegar ao fim desta legislatura?
António Costa e a sua maioria têm condições de cumprir esta legislatura. Mas a queda da anterior foi um erro. Tenho a sensação de que, se não tivesse havido a queda do Governo, o partido da extrema-direita não elegeria 12 deputados dois anos mais tarde. Mas, uma vez havendo a queda do Executivo, que abriu alas a um aumento de representantes liberais e de extrema-direita, existe o risco de uma coligação à direita com a extrema-direita. Precisamos de evitar isso. Espero que o executivo de António Costa tenha a hipótese de cumprir esta legislatura, dando oxigénio à esquerda para que se organize. Numa época de enormes dificuldades, de inflação, de ordenados baixos, com a crise da habitação, em que há sérios problemas de subsistência das famílias, não é a altura ideal para termos a ideologia da direita, com o seu ultraliberalismo, ultraconservadorismo e ultra-elitismo a comandar. Se António Costa e o seu executivo se organizarem e responderem às necessidades das pessoas, podem lá estar esta legislatura e ainda na próxima.
Que impressão tem de António Costa?
Olho para Costa com um misto de admiração e de desilusão. Mesmo não sendo militante do PS, quando houve as primárias do partido para se escolher entre António Costa e António José Seguro, inscrevi-me e votei no António Costa. Era a nossa oportunidade de termos aqui um homem carismático, com ascendência de outras paragens. Também porque tinha gostado do trabalho dele na câmara. Não é o meu líder. Admiro-o pela resiliência e capacidade de comunicação, pela capacidade política, mas esperava muito mais de António Costa. Esperava que tivesse uma óptica menos elitista, esperava que houvesse uma modernização de legislação, uma óptica mais pelos emigrantes, mais anti-racista, que aumentasse o salário mínimo nacional imediatamente para os 900 euros. Esperava um António Costa mais interventivo pela igualdade. E vejo um homem que está rodeado de indivíduos que não são necessariamente progressistas, que são elitistas e que não estão, neste momento, a dar o seu máximo para combater as desigualdades.
E Marcelo Rebelo de Sousa, com que imagem ficou dele do tempo em que esteve como deputada?
É um homem que sempre foi amável. Mas é um homem da sua época. É um excelente comunicador, consegue ser amado pelas massas, mesmo não fazendo parte delas, mesmo sendo um homem elitista, conservador e que necessita de umas ópticas progressistas. Mesmo assim, consegue ser ouvido e ser amado. Mas também perdeu uma oportunidade de tomar uma posição mais decolonial. Está por detrás, ou ao lado, de todos aqueles que querem preservar uma retórica da história nacional que é insustentável.
No que toca à luta contra o racismo, Portugal tem dado passos no bom sentido ou, pelo contrário, temos estado a marcar passo?
A eleição de três mulheres negras para o Parlamento foi um choque. As pessoas não estavam à espera, não estavam preparadas. E mesmo aquelas pessoas que normalmente falam de empoderamento da mulher, a seguir não se sabem relacionar com a mulher empoderada. É irónico isso, não é? Há sempre uma relativização, um incómodo, um desconforto. Mas houve alguns avanços na sociedade, sim, houve, inevitavelmente. Hoje, uma pessoa séria não pode afirmar que não há racismo em Portugal.
É já um passo.
Alguns governantes do PS dizem que há racismo, sim, mas que não há racismo estrutural. É já um passo admitir-se que há racismo e que é algo que deve ser combatido. Como é que alguém diz que não há racismo estrutural? Só em 1975 é que houve descolonização territorial. Como se pode dizer que não há estruturas racistas se só estamos a menos de 50 anos do colonialismo? O colonialismo acabou em 1975. É normal que ainda estejamos em ambiente de racismo estrutural porque as estruturas não se alteram assim. O que desejamos é não estar um século e meio à espera que as coisas melhorem. Mas não é olhar para o anti-racismo como uma questão das minorias, porque não é. É uma questão das maiorias. Quem é racista não é a minoria, é a maioria. Houve avanços em alguns níveis; não houve muitos avanços legislativos porque não tive muito apoio dos outros partidos e porque as minhas principais iniciativas anti-racistas foram engavetadas. Dei entrada a imensas iniciativas que nem foram discutidas.
A Joacine já disse que deixou muitas propostas por concretizar. Mas outras avançaram, como o Observatório do Racismo e Xenofobia, formalizado há dias. Sente orgulho ao ver as suas ideias saírem do papel?
Consegui a aprovação, no âmbito do OE2021, da criação do Observatório Independente do Discurso de Ódio, Racismo e Xenofobia, mas lamento que tenham tirado a parte do discurso de ódio, que afecta toda a sociedade, tendo em conta os tempos que vivemos e nos quais o discurso de ódio e a desinformação são usados para minar a democracia e as suas instituições, ao mesmo tempo que incitam à perseguição de comunidades minoritárias e naturalizam o racismo e a xenofobia. Lamento não fazer parte do mesmo, mas o Governo tem uma perspectiva própria sobre a temática e isso vê-se na escolha de uma pessoa não racializada para dirigir um observatório desta natureza. Foi também emocionante assistir à cerimónia das honras de Panteão a Aristides de Sousa Mendes, como agora à criação de uma comissão para inventariação de obras oriundas das antigas colónias, por exemplo.