Nunca uma lei aprovada sem votos contra no hemiciclo de São Bento suscitou tanta polémica. É o que tem vindo a acontecer com a Carta Portuguesa de Direitos Humanos na Era Digital (lei 27/21), proposta pelo PS e pelo PAN e aprovada na Assembleia da República por larga maioria, a 8 de Abril, só com abstenções do PCP, PEV, Iniciativa Liberal e Chega. Marcelo Rebelo de Sousa promulgou-a em 8 de Maio, António Costa referendou-a três dias depois. A 17 foi publicada no Diário da República.
No hemiciclo, nem um sopro de polémica. A contestação só surgiu depois - emanada da sociedade civil. Centrada no artigo 6.º, que contém pelo menos três disposições muito controversas. Por preverem mecanismos de protecção contra “narrativa considerada desinformação”, incluindo “textos ou vídeos manipulados” - termos vagos que podem abarcar quase tudo. Por contestarem mensagens destinadas a “obter vantagens económicas”, o que constitui potencial ameaça às mensagens de conteúdo publicitário. Por endossarem à Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) - entidade administrativa, de nomeação política - amplos poderes de deliberação e sanção. Por preverem a “criação de estruturas de verificação de factos”, de duvidosa isenção editorial, beneficiando de apoios públicos. E por atribuírem “selos de qualidade” a órgãos de comunicação social por “entidades fidedignas” nunca especificadas, o que pode favorecer jornais, rádios e televisões nas boas graças do poder político.
Tem havido acusações de todo o género a este artigo 6.º. Não falta quem acuse os legisladores de recuperar a velha Comissão de Censura, abolida a 25 de Abril de 1974, ou de tornar realidade o fictício Ministério da Verdade criado por George Orwell no seu romance “1984” - isto apesar de a Constituição da República Portuguesa, no seu artigo 37.º, determinar que “todos têm o direito de informar, de se informar e de ser informados, sem impedimentos nem discriminações”, estando garantido que “o exercício destes direitos não pode ser impedido ou limitado por qualquer tipo ou forma de censura”.
“Extremamente perigoso”
Ao NOVO, o bastonário da Ordem dos Advogados exprimiu sérias reservas em relação a este artigo, ressalvando que o restante articulado da Carta dos Direitos Digitais não lhe suscita objecções.
“O artigo 6.º parece autorizar o controlo dos conteúdos informativos, algo que só pode acontecer em circunstâncias absolutamente excepcionais. Num Estado de direito, numa sociedade democrática, não é admissível o controlo administrativo da informação”, afirmou Luís Menezes Leitão.
José Miguel Júdice é ainda mais contundente: “Esta iniciativa restaura a censura e, por isso, qualifico-a de liberticida.”
Bastonário da Ordem dos Advogados entre 2002 e 2004, Júdice não tem dúvidas: “Qualquer poder político, em qualquer época da História, procura sempre justificar acções de censura. Isto muda pouco, o que vai mudando são as justificações.” E confessa-se surpreendido pelo facto de nenhum partido político ter votado contra esta lei - isto apesar de a Iniciativa Liberal, fazendo mea culpa, ter já anunciado um projecto de alteração ao diploma, a ser votado antes da entrada em vigor, prevista para 17 de Julho.
Outro antigo bastonário, António Marinho e Pinto, mostra-se igualmente muito crítico: “Isto é extremamente perigoso. Revela as pulsões antiliberdade de imprensa que grassam nos vários poderes - do poder económico, do poder político, se calhar até do poder religioso. A mentira não se combate com medidas administrativas. A mentira combate-se com a verdade.” E aponta também reparos aos profissionais da comunicação social: “Os jornalistas portugueses convivem demasiado com o poder. Estão demasiado próximos dele para verem as suas artimanhas e os seus ludíbrios.”
As críticas têm surgido de diversos quadrantes. No seu blogue “Tempo Contado”, o escritor Rentes de Carvalho deixou um firme protesto. A seu ver, este diploma “institucionaliza e legaliza a censura, através de uma Entidade Reguladora e não dos tribunais”. No Expresso, o jornalista Henrique Monteiro reclamou: “Prefiro uma sociedade livre com mentiras do que uma sociedade que, a pretexto de proibir mentiras, acabe por proibir igualmente a verdade.”
Na sua coluna do Público, o antigo ministro socialista António Barreto não conteve a indignação: “Esta lei acaba de criar um regime de orientação, vigilância, censura a posteriori, delação e controlo da liberdade de expressão, inédito na democracia e só parecido com algo em vigor durante a ditadura salazarista.”
Menezes Leitão considera que “ainda há tempo para se suscitar ao Tribunal Constitucional a fiscalização desta lei”, o que, na sua opinião, “talvez seja útil”. A polémica está muito longe de terminar aqui.
Este artigo foi originalmente publicado na edição do NOVO nas bancas a 4 de Junho de 2021.
