Seca: drama na agricultura “e o pior está para vir”

A seca severa e extrema, que afecta uma parte significativa do território português, está a ter um impacto tremendo na agricultura, nomeadamente na produção de cereais e na pecuária extensiva, com centenas de animais a serem abatidos por falta de alimentação. A Confederação dos Agricultores de Portugal fala num cenário de “grande dificuldade” e admite que, nalguns casos, se poderá ter um cenário de “desespero” nos próximos meses. Os agentes do sector criticam a ausência de resposta e de implementação de medidas do Governo.

Portugal debate-se de novo com o problema da seca. A situação é mais complicada este ano, pois vem na sequência de outros anos também marcados pela seca extrema e está a revelar-se muito penalizador para o sector da agricultura. A produção cerealífera e a pecuária extensiva estão a sofrer particularmente com a seca e vêm aí os meses de Verão. “O pior está para vir, porque são os meses consecutivos com a necessidade de comprar alimento por causa do gado”, diz Luís Mira, o secretário-geral da Confederação dos Agricultores de Portugal (CAP): “É um cenário de grande dificuldade. Em alguns casos penso que se vai entrar num cenário de desespero nos próximos meses.”

A quebra na produção de cereais traduz-se num “impacto económico na cadeia e na produção devastador”, afirma ao NOVO José Palha, o presidente da Associação Nacional de Produtores de Proteaginosas, Oleaginosas e Cereais (ANPOC). Essa quebra reflecte-se em menos alimento disponível, nomeadamente para o gado. Sem alimento e sem água devido à seca, muitos produtores da área da pecuária estão a ser forçados a abaterem os animais.

Reservas inexistentes
José Palha explica que em termos de cereais praganosos, especialmente trigo mole, trigo duro e cevada dística, “temos cerca de 20 a 25 mil hectares deste tipo de cereais de sequeiro em que a perda é total”. “As plantas germinaram e depois acabaram por não se desenvolver por falta de humidade, por isso o impacto nas culturas de sequeiro é devastador. É 100% de perda”, sublinha o responsável da Associação Nacional de Produtores de Cereais (ANPOC). “As pastagens e tudo aquilo que é gado extensivo vão enfrentar um ano muito complicado e com a necessidade de despesas muito grandes, porque não há alimento no campo e as reservas já não existem”, completa Luís Mira.

Face à falta de alimento e de água, os custos aumentam para os agricultores, deteriorando a sua situação financeira. “Muitos destes agricultores [dos cereais] também têm uma componente de pecuária e a situação também é muitíssimo complicada, porque não existe nenhum tipo de pasto e a situação da tesouraria destas explorações está muitíssimo débil neste momento”, salienta José Palha. A Associação de Criadores de Caprinos, Ovinos e Bovinos do Ribatejo e Oeste (ACORO) traça um cenário “um bocado negro” devido às carências alimentares. “O fardo de feno que custava 25 euros, neste momento custa 90 ou 100 euros”, refere Octávio Trem, técnico da Associação de Criadores Ovinos do Ribatejo e Oeste (ACORO). Isto tem obrigado os produtores a abaterem os animais. “São centenas e centenas de vacas abatidas todos os dias”, constata.

Por agora a subida dos preços tem mais impacto no início da cadeia, na parte produtiva. “Em termos do consumidor, não será muito expectável que haja um grande impacto negativo, uma vez que já importamos mais de 90% das nossas necessidades”, vinca José Palha.

Espanha e factura a pagar
Os agentes contactados pelo NOVO criticam a ausência de um plano de longo prazo que permita a Portugal responder aos problemas gerados pela seca. “Portugal tem de olhar para a questão da gestão dos recursos hídricos, especialmente no sul do país, de forma integrada e é urgente serem tomadas medidas no sentido de, em primeiro lugar, armazenar mais água, porque em Dezembro perderam-se milhões de metros cúbicos de água para o mar que nos faziam muita falta agora. É absolutamente necessário aumentar a capacidade das barragens nas situações em que isso é possível, trazer água do Norte do país para onde faz falta, e olhar para a questão dessalinizadora e copiar os bons exemplos”, aponta o presidente da ANPOC.

Para Luís Mira o problema centra-se na execução dos planos que existem. “Os planos existem desde a década de 50 para que Portugal utilize com eficiência a água que tem disponível (...) Não temos falta de água, temos é falta de uma utilização eficiente e não é por falta de planos também. Temos é falta de execução daquilo que existe”, lamenta Luís Mira, para quem o dinheiro também não é factor. “O PRR veio colocar à disposição de Portugal uma verba significativa. Houve até a dada altura um reforço de 1.634 milhões de euros que Portugal podia ter utilizado para a resiliência relativamente à água e não o fez. Quando olhamos para os nossos vizinhos espanhóis eles utilizaram 25 mil milhões de euros no uso eficiente da água, dos quais cinco mil milhões só para a parte agrícola. Esta é a diferença entre um país que pensa a médio/longo prazo nos problemas que a sua população vai enfrentar (...) Portugal ignorou a questão da água, tendo nesta altura verbas disponíveis. É escandaloso e o país vai pagar por isso nos próximos anos”, enfatiza.

O presidente da associação ZERO, Francisco Ferreira, também considera que o Governo pode olhar para o caso dos vizinhos espanhóis. “Enquanto nós respondemos com apoios aos agricultores pela perda de produtividade, os espanhóis estão a pôr a maioria do dinheiro em obras, coisa que estamos a fazer também, mas de uma forma extremamente limitada (...) Estamos a reagir em vez de antecipar”, frisa.

Questionado pelo NOVO sobre quando poderá anunciar mais medidas de apoio aos agricultores mais prejudicados, o Ministério da Agricultura não indicou uma data. Optou por referir que está a preparar uma intervenção junto da Comissão Europeia sobre o impacto das secas recentes no sul da Europa, “reforçando a solicitação à Comissão para que esta autorize a utilização dos instrumentos disponíveis no âmbito da Política Agrícola Comum.”

Artigo originalmente publicado na edição do NOVO de 27 de Maio

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