“Na questão do SIS, a reacção do primeiro-ministro foi a de um Pôncio Pilatos”

Antigo director do SIS e ex-director-geral do SIED, Jorge Silva Carvalho considera que o SIS poderá ter ultrapassado os limites das competências, invadindo terrenos das polícias.

Jorge Silva Carvalho esteve 19 anos nos serviços de informações, tendo sido director de diferentes departamentos do Serviço de Informações de Segurança (SIS), chefe de gabinete do secretário-geral do Sistema de Informações da República Portuguesa (SIRP) e director-geral do Serviço de Informações Estratégicas de Defesa (SIED).

Saiu em desacordo com o desinvestimento nos serviços e esteve envolvido num processo judicial, em que acabou por ser condenado por violação de segredo de Estado e abuso de poder.

Em entrevista ao NOVO, admite erros, que voltaria a cometer em defesa dos interesses superiores do Estado. Actualmente consultor de estratégia e segurança, analisa a crise política desencadeada pela intervenção do SIS no processo de recuperação do computador de um ex-adjunto do ministro das Infra-Estruturas e diz que o SIS agiu sem pensar, cometeu erros e vai pagar pela precipitação e voluntarismo.

Como antigo dirigente dos serviços de informações, como viu a intervenção do SIS num alegado roubo ou furto de um computador?
Confesso que, inicialmente, não atribuí grande valor ao sucedido, até porque tenho um baixo critério de avaliação em relação a todos os intervenientes e comentadores.

Porquê?
Porque demonstram um baixo nível de conhecimento sobre a actividade dos serviços de informações, seja dos comentadores, seja dos políticos que, mesmo não estando no Governo, deveriam saber um bocadinho mais.

Iliteracia sobre segurança?
Nota-se até na utilização de termos como “as secretas”. Além de ser pejorativa, tem a intenção apenas de meter este assunto no carrossel político-mediático. Nota-se o desconhecimento dos próprios juristas sobre as competências dos serviços de informações. Limitam-se a fazer uma análise literal da lei, sem reflectirem.

Desligou-se da questão?
Com o decorrer da situação percebi que o assunto em concreto tinha alcançado uma maior dimensão.

O que mais o chocou?
Não é a comunicação ao SIS que está em causa, sobretudo dando como boa a existência de matéria classificada num computador. Pareceu-me perfeitamente avisado por parte do Ministério das Infra-Estruturas tê-lo feito. Há, contudo, um aspecto mais conturbado, que é a questão da competência dos serviços de informações para agirem quando uma acção possa ser já considerada um crime. Aqui é que há um primeiro erro por parte do Governo. Se se pede a intervenção dos serviços e, ao mesmo tempo, o ministro das Infra-Estruturas classifica a acção sobre o computador como um roubo ou um furto, isso imediatamente inibe a competência do SIS.

O SIS, então, extravasou a competência?
Não pode agir em matérias que são do âmbito das polícias. Havendo um roubo ou furto, mesmo que seja catalogado por alguém da tutela, que é o dono do computador, o SIS já não poderia intervir porque já não lhe competiria.

Tratando-se de um crime, de quem seria a competência?
Se fosse um computador com um segredo de Estado, claramente seria da Polícia Judiciária. Se fosse só um roubo ou furto de um computador, já só poderia ser da PSP ou da GNR. Neste caso, o SIS ficaria com um espaço mais limitado de acção.

Toda a gente falou na prática de crimes...
Essa tese foi reiterada pelo próprio primeiro-ministro numa fase posterior, em declarações públicas, ao dizer que terá havido inclusive violência física. Portanto, ter-se-ão verificado outros crimes conexos. Isso implicaria que o SIS, imediatamente, não pudesse ter agido. Não quer dizer que se abstivesse de acompanhar o assunto, ao lado de quem tivesse competência para agir, caso houvesse a notícia de eventuais fugas de informação em segredo de Estado no computador. Esta interacção com as polícias é normal. Qualquer intervenção do SIS teria de ser em articulação com a autoridade policial competente.

O que acautelaria na intervenção do SIS?
Os serviços de informações deveriam ter pensado melhor no impacto da sua intervenção. E parece-me que, daquilo que é conhecido, não houve intervenção dos principais dirigentes. A secretária-geral do SIRP [embaixadora Graça Mira] não terá intervindo, mas sim a sua chefe de gabinete, Paula Morais, que é das pessoas mais competentes que conheço, e terá intervindo alguém do SIS que não o director-geral. Aqui poderá ter havido alguma precipitação.

O director-geral do SIS, Neiva da Cruz, assumiu a responsabilidade...
Claro. O director-geral do SIS é um homem muito conhecedor, um operacional experiente, e assumirá a responsabilidade, embora tenha muito pouco para admitir, porque quem manda efectivamente no SIRP é a secretária-geral.

Os directores do SIS e SIED são meros operacionais?
O SIRP, desde 2007, tem uma estrutura diferente. Os dois serviços de informações, basicamente, só existem operacionalmente. Quem coordena, dirige, quem tem o comando efectivo dos serviços é a secretária-geral, que é quem dirige os conselhos específicos do SIS e do SIED, como o financeiro e o operacional. Portanto, todas as decisões estratégicas e muitas das decisões operacionais passam pela secretária-geral.

Descarta responsabilidades do director do SIS?
A responsabilização política nunca seria do director do SIS, sobretudo quando ele não interveio. Fica-lhe bem disponibilizar-se nesse sentido, mas a responsabilidade legal, institucional, é completamente da secretária-geral.

Entende que a secretária-geral deveria assumir publicamente a responsabilidade política neste caso?
Acho que vai ter de assumir alguma coisa, tendo em conta que a entrada do SIS neste processo não deveria ter acontecido. Esta é a minha avaliação subjectiva.

O que falhou?
Tudo deveria ter sido questionado, sabendo-se da pressão mediática e política que há sobre este processo. Foi precipitado envolver os serviços de informações numa acção-limite.

Foi ilegal, portanto...
Não estou a falar de ilegalidade, não estou a falar de falta de competência para... estou a falar apenas de precipitação, a não ser que houvesse alguma informação que os serviços conhecessem previamente que pudesse causar algum prejuízo grave para o interesse público se o o computador não fosse acautelado.

Admite que o computador pudesse conter segredos de Estado?
Desconheço, e estaria disposto a rever a minha análise crítica caso houvesse. Mas, com base naquilo que sabemos, nada disso aconteceu e houve apenas um voluntarismo no sentido de resolver a situação.

Esse excesso de voluntarismo é frequente no SIRP?
O excesso de voluntarismo acontece. Os serviços de informações são compostos por homens e mulheres. Eu próprio, apesar da minha longa experiência, também cometi erros no meu passado – alguns deles, graves. Paguei por eles praticamente sozinho. Infelizmente, não fui só eu a pagar. Mas também os cometi.

Hoje evitaria cometer os erros que admite ter cometido no passado?
Alguns erros, voltaria a cometer, porque não os cometi para meu bem, não os cometi para o meu interesse pessoal, cometi-os porque achei que era a única solução para proteger o Estado e o meu serviço. Na altura, se calhar, fiz um erro de julgamento, admito que tenha feito, mas, muito provavelmente, perante circunstâncias iguais faria a mesma coisa. Na altura fiz uma análise crítica e corri o risco.

Neste caso do computador...
Eu acho que, neste caso, não se fez essa análise crítica e houve alguma precipitação.

Há o risco de perda de confiança nos serviços?
Com excepção do Presidente da República, que foi o único que tratou este processo e os serviços de informações, em particular, com a dignidade que merecem, ninguém, nem na oposição nem pessoas que já tiveram cargos governativos, teve uma atitude coerente e curial com a protecção dos serviços, a começar pelo primeiro-ministro.

Como vê a actuação de António Costa?
A reacção do primeiro-ministro, na sua primeira entrevista sobre isto, foi a de um Pôncio Pilatos. “Vou lavar as minhas mãos disto, não sei quem foi, não faço ideia quem seja...” e é claramente com a intenção de caminhar para aquela solução de que alguém vai ter de pagar...

Vão ser os serviços de informação a pagar...
Vão ser os serviços, e já sabiam disso. Houve um erro e uma precipitação porque quiseram agradar, quiseram ser rápidos. Volto a dizer, só se compreenderia caso houvesse alguma informação que justificasse essa urgência na actuação.

Diz que não o surpreende o envolvimento do SIS no caso do computador do Ministério das Infra-Estruturas... Porquê?
A situação não me surpreendeu, atendendo a este contexto cultural. Acho que todos os actores estiveram mal, salvaguardando que possa haver alguma coisa que eu desconheça. Parto sempre do princípio de que haverá qualquer coisa que não é do conhecimento público, apesar da pressão mediática. Não é mau que nem tudo se saiba. É sinal que os serviços funcionam.

Os serviços trabalham para o Estado ou para o Governo? O Governo não representa o Estado?
O Governo, neste caso o primeiro-ministro, é quem tutela os serviços de informações. Portanto, a interacção dos serviços de informações com o Governo e com o primeiro-ministro, em particular, deve ser permanente. A secretaria-geral dos serviços, que é, na prática, quem verdadeiramente tem o comando e o controle dos serviços de informações, não são os directores gerais do SIS e do SIED. A secretaria-geral dos serviços tem nas suas mãos, no âmbito das suas competências, o apoio informacional a políticas estratégicas nacionais – ou às relações internacionais, ou à política de defesa nacional – e a outros ministérios que são considerados estratégicos, como o da Economia, o das Infra-estruturas, o da Justiça, etc.. Portanto, qualquer interação não só é bem-vinda como desejável.

Mas não podem receber ordens directas de um ministro...
Os serviços devem agir no limite das suas competências, mas podem receber inputs de identidades públicas, sejam elas de membros do Governo, chefes de gabinete ou de direcções-gerais, empresas públicas e empresas municipais, como podem receber de cidadãos individuais. Receber um input não é receber uma ordem.... A decisão de agir numa situação dessas é exclusivamente dos serviços de informações. A única coisa que o SIS tem de fazer é mostrar que não está a receber uma ordem, mas uma informação.

Ao que parece foi uma chefe de gabinete de comunicou ao SIS o roubo ou o furto de um computador...
Não vejo qualquer problema que tenha sido um chefe de gabinete. Aliás, muitos chefes de gabinetes têm, na prática, na condução das políticas ministeriais, mais importância do que os próprios ministros. Os serviços interagem com qualquer entidade pública ou privada sobretudo com as que têm sob responsabilidade a gestão de infraestruturas críticas nacionais e as empresas de interesse estratégico. As infra-estruturas críticas nacionais são fundamentais para a defesa do país, para a segurança interna do país e são possíveis alvos de espionagem e de terrorismo e, portanto, a acção dos serviços não é apenas recolher informação, é também agir preventivamente na protecção dos nossos interesses. Os interesses estratégicos nacionais estão incluídos naquilo que é o plano do Conselho Superior de Informações.

Considera precipitada a intervenção do SIS?
Daquilo que nós conhecemos, não havia nenhuma urgência. Essa actuação poderia ter sido pausada, melhor pensada. Se calhar, foi uma decisão tomada por alguém que é um bocadinho mais precipitado, ou alguém que é mais pistoleiro, ou que quer agradar ao poder político.

Daí considerar que houve uma grande falta de sentido de Estado...
A falta de sentido de Estado e de sentido institucional começa pelo próprio pelo primeiro-ministro, na medida em que, claramente, se coloca numa posição de auto-preservação. Aliás, toda a situação que tem vindo a ser construída tem sido de auto-preservação das principais figuras.

Como?
Se reparar, parece que a secretaria-geral do SIRP não interveio, mas sim a chefe de gabinete. Parece que o director-geral do SIS não interveio, mas alguém abaixo. Parece que o ministro das Infra-Estruturas não falou com o SIS, foi só a chefe de gabinete, e parece que o primeiro-ministro não sabia, mas apenas o secretário de Estado. Portanto, isto parece claramente, antes de tudo, uma forma de contenção de danos em matéria de gestão de crise. Isto faria sentido se não estivessem em causa interesses superiores do Estado português, nomeadamente organizações como os serviços de informações.

Como vê o papel das oposições?
As oposições não são imunes a isto. A forma como tem canalizada a pressão sobre os serviços de informações, além de ser legítimo até certo ponto, porque é importante que se apure a verdade, é ilegítimo quando já deveriam ter percebido que a narrativa governativa é a de fazer com que essa discussão vá para os serviços de informações. E tem-se visto isso através da intervenção de vários comentadores. Eu costumo dizer que os comentaristas do regime falam sobre os serviços de informações para criar um desfoque daquilo que é o âmago da CPI à TAP.

Porquê?
Já se fala noutra comissão para se averiguar a intervenção dos serviços e as oposições estão a ir atrás desse discurso, sem perceber claramente que o que poderá interessar para a democracia é a contextualização daquilo que está a acontecer na CPI à TAP. Alguns comentaristas do regime, mesmo da oposição, acabam por legitimar a história do Governo e até por proteger o Governo. O Governo está, se é que tem algum problema, claramente mais disposto a abanar os serviços de informações do que a abanar uma figura política. É isto que revela a falta de sentido de Estado e a falta de sentido institucional.

Tudo isto confunde a opinião pública...
Transmite à população uma espécie de desgoverno geral do país, mas na prática, uma vez mais, as entidades públicas estão a ser destruídas e postas em causa.

Podemos verdadeiramente confiar nos serviços de informações
Podemos confiar nos serviços de informações, como podemos confiar em qualquer entidade pública. Tem havido casos graves, casos de crimes, casos de corrupção nas polícias, na magistratura, em todo o lado. Os serviços são constituídos por homens e mulheres e não são imunes a isso. Apesar de tudo, têm tido muito menos problemas do que outras entidades públicas. Portanto, merecem pelo menos o benefício da dúvida nesse aspecto, além de que representam o país e asseguram funções fundamentais.

O que é que neste caso mais o surpreende?
A questão das matérias classificadas em computadores portáteis. As matérias classificadas estão subordinadas a uma lei. É preciso perceber como foram essas matérias classificadas, se efectivamente foram classificadas, se efectivamente havia matéria classificada. Quem é que a classificou? Qual foi a intervenção do Gabinete Nacional de Segurança, que é a entidade com competência para fazer essa verificação, se os documentos estavam devidamente classificados – o que me custa acreditar que estivessem num computador portátil que ainda por cima podia sair do Ministério –, se as pessoas que utilizavam essa informação classificada estavam credenciadas para o efeito... Isto é que deveria ser um aspecto importante a averiguar. É fundamental perceber se é verdade tudo o que foi dito, porque é isso que sustenta também a intervenção quer do SIS quer da PJ.

Acha estranho que haja matéria classificada num computador?
Não, não estranho porque as práticas do governo português em geral, não deste governo, são péssimas em termos securitários. Aliás, o normal tem sido a fuga de informação, não é? E não é só do Governo. Também na Assembleia da República se fazem coisas à porta fechada, onde supostamente se falam de segredos de Estado, e depois sai tudo cá para fora através dos telemóveis dos deputados que estão lá dentro. Portanto, enquanto Estado, não somos muito estruturados em matéria de segurança da informação, não somos.

Tem alguma explicação para isso?
Os ministros hoje em dia duram muito pouco tempo, os gabinetes duram pouco tempo e o controlo sobre a informação é, no mínimo, vácuo. Não levamos muito a peito as matérias classificadas. Seria importante que os serviços, no seu trabalho prévio, sensibilizassem as entidades públicas ou privadas para as questões das matérias classificadas, para as questões das infra-estruturas críticas das empresas de interesse nacional, e para a possibilidade de essas entidades serem abordadas no âmbito da espionagem por interesses estrangeiros, ou no âmbito do terrorismo, no sentido de poderem fazer levantamentos securitários sobre questões que possam pôr em causa o interesse nacional.

Os serviços de informação deveriam envolver-se na escolha dos governantes?
Há países ocidentais onde os serviços de informações são legalmente chamados a fazer aquilo que nós chamamos um vetting de segurança sobre pessoas que vão ser nomeadas para cargos governativos e para outros cargos. Em Portugal, não existe essa tradição, excepto para os que vão exercer funções relacionadas com a NATO, para os quais o Gabinete de Segurança emite credenciais de acesso. De resto, confia-se nas pessoas que são de escolha política pura e dura. A falta desse vetting de segurança, a falta dessa análise, põe em causa o Estado, põe em causa os governos, porque se vem a descobrir coisas, indiscrições, vem a descobrir-se laços financeiros que não deveriam existir, até laços com potências estrangeiras porque nós somos todos muito internacionais.

Governantes com ligações estrangeiras?
Pode acontecer e vai acontecer. Nós já temos pessoas em cargos políticos, de elevada importância, com ligações próximas com o Estado chinês e com entidades de representação do Estado chinês ou do Estado russo, ou outros que estão no nosso arco de alianças. Pessoas que venham a ocupar funções governativas e que já tenham tido funções de assessoria a Estados ocidentais e que tenham recebido dinheiro por isso, ou até de entidades privadas, como já aconteceu.

A Polícia Judiciária entende que a inacessibilidade aos metadados está a beneficiar a criminalidade. O que acha?
Nós não somos o país mais democrático da Europa, mas somos o único país cujos serviços de informações não têm acesso à recolha de informações por metadados. Isso enfraquece-nos muito.

Porquê?
Porque a recolha de informações de metadados não é propriamente para saber da vida pessoal. A recolha de informações de metadados dá aos serviços de informações alguma abrangência operacional que de outra forma não têm, acabando por utilizar mais recursos humanos e mais recursos materiais, nomeadamente com a localização dos suspeitos. A localização, neste caso, de telemóveis ou de meios de comunicação de suspeitos, em determinado momento, permite actuar de uma forma incrivelmente mais eficaz no combate ao terrorismo, em particular.

O que achada da posição da Polícia Judiciária?
Acho que o director nacional da PJ tem toda a razão. Eu percebo a posição do Tribunal Constitucional, mas não concordo. A Constituição foi feita quando só havia chamadas telefónicas e não estamos nem de perto nem de longe no espírito da Constituição. Não é com essa interpretação que se garante os direitos dos cidadãos, nem o direito à privacidade que a Constituição quer garantir. À luz dos sistemas de comunicação de hoje, à luz do que a sociedade evoluiu, não faz sentido.

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