Trata-se de uma alteração ao Código Penal (CP) resultante da aprovação, ontem, no Parlamento da nova Lei de Saúde Mental. O diploma prevê a revogação do n.º 3 do artigo 92.º do CP, segundo o qual “se o facto praticado pelo inimputável corresponder a crime punível com pena superior a oito anos e o perigo de novos factos da mesma espécie for de tal modo grave que desaconselhe a libertação, o internamento pode ser prorrogado por períodos sucessivos de dois anos até se verificar que cessou o estado de perigosidade criminal que lhe deu origem”.
Este normativo está alicerçado na Constituição da República Portuguesa (CRP), no n.º 2 do artigo 30.º, onde se lê: “Em caso de perigosidade baseada em grave anomalia psíquica, e na impossibilidade de terapêutica em meio aberto, poderão as medidas de segurança privativas ou restritivas da liberdade ser prorrogadas sucessivamente enquanto tal estado se mantiver, mas sempre mediante decisão judicial.”
Embora este artigo permaneça na CRP, o seu normativo vai desaparecer da lei penal. A iniciativa da alteração da Lei de Saúde Mental e da legislação conexa partiu do Governo. O Executivo, para justificar a revogação do n.º 3 do artigo 92.º do CP, afirma: “A subsistência de tal regime, embora ancorada na CRP, é há muito questionável, por permitir que as medidas de internamento tenham, na prática, uma duração ilimitada ou mesmo perpétua, contrariando o entendimento de que deve valer para todos os cidadãos – imputáveis e inimputáveis – a regra de que não pode haver privações da liberdade com carácter perpétuo ou de duração ilimitada ou indefinida.”
Os juízes estão contra esta alteração, dizendo, citando o professor Paulo Pinto de Albuquerque, que “a justificação político-criminal da medida de segurança reside precisamente na sua necessidade como meio de reacção do Estado contra a perigosidade do agente, para além da culpa do próprio agente”.
Esta tomada de posição surge no parecer enviado à comissão parlamentar da Saúde pelo Conselho Superior da Magistratura (CSM), opondo-se à revogação do citado artigo do CP.
Diz o CSM: “Parece que é intenção do legislador que, finda a duração da pena máxima aplicável ao crime cometido, mesmo que o inimputável sujeito a medida de segurança de internamento mantenha perigosidade baseada em grave anomalia psíquica, seja libertado, definitiva e incondicionalmente, logo que atingido aquele máximo.”
Para o CSM, esta alteração ao CP põe em conflito dois interesses: “O conflito entre o direito de liberdade pessoal do inimputável, por um lado, e, por outro, o direito à segurança e à defesa social – que ao Estado também incumbe garantir.”
Parafraseando, o professor Figueiredo Dias, o CSM defende: “As exigências de defesa social perante a criminalidade são também elas um postulado do Estado de Direito e de uma política criminal eficiente e racional.”
O CSM lembra também que “cerca de 70 por cento dos inimputáveis internados foram autores de crimes contra as pessoas, com grande incidência nos crimes de homicídio, na forma tentada ou consumada”.
Os juízes concluem: “Temos sérias reservas quanto à solução proposta, que, em nome de uma absolutização da liberdade que a própria CRP rejeita, deixará a sociedade desprotegida em relação a possíveis comportamentos de consequências graves e imprevisíveis, dada a perigosidade latente do internado.”
Posição contrária tem o Ministério Público que, em parecer do Conselho Superior, disse: “Tendo em conta as recomendações do Comité Europeu para a Prevenção da Tortura e das Penas ou Tratamentos Desumanos ou Degradantes sobre esta matéria e, em geral, as obrigações de cariz internacional a que o Estado português se encontra vinculado, não se vislumbra nada a assinalar a esta alteração.”
404 inimputáveis
O sistema prisional tem à sua guarda 404 inimputáveis, dos quais 204 em estabelecimento prisional: 28 no Hospital Prisional de São João de Deus; e 176 na Clínica de Psiquiatria e Saúde Mental anexa à prisão de Santa Cruz do Bispo (masculina). Em clínicas e hospitais psiquiátricos não prisionais encontram-se 200 inimputáveis: 45 no Hospital Júlio de Matos; seis na Clínica de São João de Deus, no Funchal; 39 no Hospital Magalhães Lemos; 108 no Hospital Sobral Cid; um na Casa de Saúde do Telhal; e um na Casa de Saúde de Idanha-Belas.
Artigo originalmente publicado na edição do NOVO de 27 de Maio