Opinião

Vemos, ouvimos e lemos; há quem tente ignorar

Leonardo Ralha


Talvez se possa argumentar que a culpa é de Sophia de Mello Breyner Andresen. Nos versos brutais e sucintos da “Cantata da Paz”, escrita para ser lida às primeiras horas do ano de 1969, ainda com a Guerra Colonial a ceifar vidas de militares, guerrilheiros e civis, falava de Hiroshima e dos povos destroçados de África e do Vietname, concluindo: “Nada pode apagar/ o concerto dos gritos/ O nosso tempo é/ pecado organizado.”

Poder-se-á argumentar que Lula da Silva, visto por muitos como o raio de luz que irrompeu para libertar o Brasil e o mundo do obscurantismo bolsonarista, apenas pugna por calar o concerto dos gritos que agora se ouve em terras ucranianas. Assim sendo, Sophia servirá de avalista, com versos escritos no final de 1968, ao “quando um não quer, dois não brigam” proferido pelo homem eleito para devolver o Brasil ao concerto das nações.

Só que não. “Vemos, ouvimos e lemos/ não podemos ignorar”, escreveu a poetisa, sem poder imaginar que, daí a meio século, existiria tanta gente disposta a ignorar olhos, ouvidos e cérebro para não processar as declarações de Lula da Silva pelo que são: uma maldisfarçada aquiescência ao regime de Putin. “A gente não sabe porque é que esta guerra existiu”, disse o líder do maior país lusófono, na penosa conferência de imprensa após um encontro com o chanceler alemão, Olaf Scholz, ao qual recusou a cedência de munições às forças ucranianas. “O Brasil não está interessado em que sejam usadas na guerra entre Polónia e Rússia”, disse, apressando-se a corrigir para Ucrânia antes que alguém desconfiasse que teria recebido inside information directamente do Kremlin. Felizmente, o lapso é explicável pela transbordante ignorância de quem explicou que o último conflito em que o Brasil se viu envolvido foi a oitocentista Guerra do Paraguai, lavando a jacto a memória dos 20.573 “pracinhas” que participaram no derrube de Mussolini em Itália, tombando 471 deles na Segunda Guerra Mundial.

Na conferência de imprensa, em que comparou Zelenski a Saddam Hussein, Lula da Silva foi como é. Cabe a quem quiser ignorar, tal como há quem ignore o que Mariana Mortágua - que tem demonstrado destreza no assobio para o ar sobre a Ucrânia, fazendo esquecer tudo o que dizia antes de Putin concretizar as ameaças - teve a coragem de revelar sobre o que pensa da propriedade privada.

“Alguém que, por mera retaliação, mantém um imóvel fora do mercado, numa altura em que há uma crise de habitação, tem de ser obrigado a pôr o seu imóvel a arrendar”, explicou a deputada, numa entrevista ao Eco em que defendeu a imposição de um tecto máximo às rendas nas grandes cidades.

Haverá porventura no Bloco de Esquerda quem seja tão social-democrata quanto o partido apregoa ser. Não é o caso de Mariana Mortágua, a quem decerto estará reservado um Nobel. Não pelas teses económicas, e sim pela invenção do retaliómetro, esse aparelho destinado a identificar proprietários que devem ser punidos. Talvez Lula possa adquirir uns lotes e enviar para a Ucrânia.