Opinião

Terá mesmo sobrevivido o governo de Macron às moções de censura?

Ema Coutinho


O governo francês sobreviveu, mais uma vez, a duas moções de censura, apresentadas por dois partidos com representação parlamentar: uma das moções, com margem de nove votos; a outra, sem representar qualquer perigo por ser exclusiva do próprio partido.

Contudo, será que Emmanuel Macron e, consequentemente, Élisabeth Borne continuarão com o mesmo registo; ou melhor, poderão continuar com o mesmo registo governativo? Não. A resposta é tão óbvia que a própria primeira-ministra acabou por responder. Élisabeth Borne, nas vésperas da mobilização geral do dia 28 de Março, recorreu à imprensa para anunciar e, de certa forma, tranquilizar os franceses, que não iria voltar a empregar o polémico artigo 49.º/3 da Constituição Francesa – a não ser em questões orçamentais –, que permite ao Governo adoptar uma lei sem o voto do Parlamento quando o primeiro não possui a maioria absoluta necessária. Isto é, um mecanismo capaz de contornar uma das principais funções destinadas ao Parlamento francês.

Apesar de ter resistido ao possível desmembramento do Governo, as moções de censura impostas ao governo francês reflectem o descontentamento e a revolta sentida não só por parte dos diversos grupos parlamentares como também pela própria população – descontentamento esse que continua a prevalecer nas ruas francesas, retrocedendo no tempo até à época dos gilets jaunes, aquando do primeiro mandato do Presidente Macron.

Ora, a questão não se cinge apenas a ter-se uma posição favorável ou desfavorável no que toca à nova idade das reformas, na passagem dos 62 para 64 anos, com entrada em vigor para 2030. Os pontos fulcrais nesta situação passam, maioritariamente, pelas consequências sociais que se vivenciam actualmente no território francês, assim como pelas condições que o governo francês, actualmente, já não apresenta para continuar, na sua integridade, a governar.

Quanto ao primeiro ponto, é importante salientar e referir que as revoltas francesas sentidas em diversos cantos do país são destinadas a impor mudanças ao Governo, tanto quanto a este tópico específico – das reformas – como também pelo aumento do custo de vida e redução do poder de compra, condicionados e influenciados pela inflação sentida a nível mundial. Ou seja, os danos e os prejuízos afirmados pela população francesa que têm passado inúmeras vezes pelos nossos canais televisivos reflectem um descontentamento não referente única e exclusivamente à questão das reformas. Aliás, muito antes da utilização do art.º 49.º/3 já os franceses saíam à rua e inúmeras manifestações e paralisações em todos os sectores sociais eram provocadas com vista a pressionar o Governo a apresentar novos e maiores pacotes de ajuda de combate à inflação que, no mês de Fevereiro, rondou em França os 6,3%.

Outra questão, ainda subjacente ao primeiro ponto, relaciona-se com o carácter revolucionário da população francesa – um ponto sensível a abordar. Os franceses, hereditários dos valores da Revolução Francesa e do espírito revolucionário, sempre demonstraram, mesmo com as múltiplas administrações dos diferentes Presidentes, não se conformar com políticas consideradas contrárias e injustas. Este tipo de postura acarreta, consequentemente, duas visões: a primeira observa este tipo de condutas como um sinónimo de civismo, inconformismo e a normal utilização do direito à greve e de manifestação. A segunda visão, bem mais crítica, defende que os franceses, muitas vezes, manipulam o argumento do direito à greve para protestar contra qualquer política mais restrita por parte do Governo, na sua maioria por razões de força maior, como, neste caso, a guerra na Ucrânia.

Note-se ainda que, apesar de a subida da idade da reforma implicar esforços acrescidos para a população, dado que este tópico já não era tocado pelo Governo há décadas, a França, lado a lado com a Suécia e a Noruega, continuará a ser um dos países da União com a idade de reforma mais baixa. Acrescido a isso, se a idade da reforma continuasse nos 62 anos, não só a segurança social francesa não aguentaria os custos suplementares – lembrar que, em tempos de covid-19, a França foi dos países que mais medidas extra adicionaram para ajudar os franceses e as pequenas e médias empresas, e o mesmo se tem verificado, nos dias de hoje, em contexto de guerra – como também se sofreria um efeito de dominó no espaço europeu. Explicitando, a partir do momento em que os outros países continuassem com uma idade de reforma mais alta, a Suécia e a Noruega aumentassem a idade e a França permanecesse passiva e imóvel, a população dos países costeiros padeceria de um contágio, desejando e forçando os respectivos governos a adoptar a mesma postura.

Em último lugar, Emmanuel Macron sempre colocou a alteração da idade da reforma nas suas campanhas eleitorais, pelo que não é compreensível tamanha admiração por parte dos franceses, essencialmente daqueles que votaram no actual Presidente na primeira e segunda voltas.

No que toca à segunda questão, a capacidade – ou falta dela – governativa do governo de Emmanuel Macron. As duas moções de censura, ainda que muitas vezes sejam apenas um mecanismo utilizado de ânimo leve pela oposição numa tentativa destrutiva para com o partido no poder, são, metaforicamente, amostras do percurso governativo da ala Macron até à data. A margem de nove votos é demasiado diminuta para ser ignorada. Assim sendo, seria importante que Macron tentasse efectuar algumas aparições, não só para oferecer mais justificações económico-políticas à população como também para recuperar a confiança e o contacto directo outrora conquistado.

Posto isto, a idade da reforma e a respectiva reforma político-social não é a principal questão a ter em mente ou alvo de debate e contestação. A própria forma de execução da prática política é a principal problemática aqui patente. A utilização do 49.º/3 é a prova e a perfeita evidência de que o Governo age como uma maioria absoluta quando, na realidade, a percentagem de aprovação de Emmanuel Macron em França não chega aos 20%.