Opinião

Saudades do animal feroz e do menino-guerreiro?

Leonardo Ralha


Deixando de parte o velho chavão “não foi para isto que fizemos o 25 de Abril”, também é duvidoso que o dia seguinte ao da revolução tenha sido feito de propósito para, 49 anos depois, permitir as ocorrências que tiveram lugar no Ministério das Infra-Estruturas, no coração de Lisboa, bem perto do Campo Pequeno, que ciclicamente acolhe manifestações contra o tipo de touradas que envolvem animais irracionais.

Por entre o radical desencontro de versões quanto ao sucedido no edifício lisboeta, com os papéis de agressor e de agredido a oscilarem consoante quem tem o microfone à frente, é consensual que na noite de 26 de Abril de 2023 houve desmedida discórdia quanto à posse de um computador portátil. Terá havido empurrões recíprocos, tentativas de retirar à força o equipamento dos braços de um adjunto que acabara de ser exonerado por telefone e até o refúgio de uma chefe de gabinete e várias adjuntas e assessoras na casa de banho que, por uns dias, será a mais famosa de Portugal. Embora contraditórias, as versões do ex-adjunto e da chefe de gabinete, chamados pelos deputados da Comissão Parlamentar de Inquérito à Tutela Política da Gestão da TAP, coincidiram em serem escabrosas, desoladoras e tristes.

Todos nós que assistimos àquelas audições, por vezes de queixo caído e outras de dentes cerrados, poderíamos sentir vergonha alheia caso nada tivéssemos a ver com aquilo. Mas temos. Graças ao processo de nacionalização, a TAP voltou a ser de nós todos, tal como o Governo é de nós todos, tenhamos ou não contribuído para a maioria absoluta que Marcelo Rebelo de Sousa rotulava de “cansada e requentada” ainda antes de anunciar aos compatriotas que perdeu confiança no que António Costa e os seus ministros andam a fazer.

Mais do que num pântano, caminhamos num pavimento que faz lembrar o pedaço de calçada com pedras deixadas fora do lugar que, nesta sexta-feira, o chefe do Estado tentou calcar com os sapatos, num detalhe simbólico que pareceu uma coincidência bem planeada. Ter a convicção de que é possível obter muito melhores resultados sem alterar regras do jogo começa a ser algo reservado aos mais crédulos dos crentes.

Chegados a este ponto, é legítimo perguntar se alguns regressos que aparentavam ser impossíveis poderão ser realidades. Tal como não há dia em que Santana Lopes não fique mais reabilitado junto de quem viu o seu governo implodido a partir de Belém por motivos que parecem triviais perante os actuais “casos e casinhos”, começa a ser plausível que José Sócrates seja opção legítima para eleitores agastados com o PS. Assim defende Rui Gomes da Silva na entrevista publicada nesta edição do NOVO.

Apesar do passado, e das bigornas legais que pendem sobre Sócrates, o “animal feroz” e o “menino-guerreiro” ganham luz na penumbra dos nossos dias. Disso não têm culpa e podem tirar proveito.