Opinião

Romper o cerco à democracia

Adalberto Campos Fernandes


Em democracia, a ideia de cercos ou de cordões sanitários apenas serve os propósitos da intolerância e da incapacidade de lidar com a diferença. Na prática, não passa de um impulso antidemocrático para condicionar a liberdade através da restrição dos direitos dos outros, esboçando a violência nas suas múltiplas fórmulas de expressão. A democracia tem como princípio fundamental a garantia da liberdade individual e colectiva. A sonegação dos seus valores constitui um primeiro passo para a sua desconstrução por parte daqueles que, no essencial, de forma dissimulada, vêem nas insuficiências da democracia o alimento para o populismo e a demagogia. A fórmula, conhecida da História, vai repetindo, ao longo dos tempos, os mesmos processos com base numa narrativa sumária. A técnica resume-se à simplificação do argumentário transformando cada acto político num exercício de polarização e de incentivo ao confronto. As correntes políticas geradas a partir deste ideário trocam a sustentação das ideias e a coerência do pensamento pelo apelo fácil às emoções, instrumentalizando o capital de descontentamento dos diferentes sectores sociais ou grupos profissionais.

O recurso aos apelos para cercar, expulsar, castigar ou punir têm como única finalidade fazer do belicismo o catalisador do descontentamento, agregando, por essa via, a natural frustração de muitos com os resultados das políticas e a qualidade das respostas aos seus problemas. O ritual político segue, um pouco por toda a parte, os ensinamentos deixados na História pelos líderes e referências destes novos actores - no essencial, a definição de um quadro restrito de valores em que se misturam ideias de patriotismo nacionalista, tradicionalismo cultural e radicalismo político. A ideia de “purificação” emerge como o elemento central deste discurso, tornando inevitável o sentimento de uns contra os outros, de separação e de purga. A manifestação, recentemente anunciada, como o cerco que procura confinar, reparar e purificar assenta nessa ideia política. Este é o problema central deste tipo de movimentos que procuram contrapor às falhas do sistema a urgência de uma ruptura não apenas epistemológica, mas também disruptiva, de carácter revolucionário.

O sistema político tradicional tende a reagir de forma temperamental, recorrendo a inquietas abordagens defensivas ou, pelo contrário, proclamando exaltantes confrontos, levando o combate para o terreno onde a vantagem está do lado dos populistas. Tarda em compreender que a resposta é exclusivamente política, no plano dos valores e dos ideais democráticos, mas, sobretudo, no domínio das respostas às desigualdades, à pobreza, à corrupção e à degradação do Estado. Este confronto entre os que defendem a liberdade e os que dela tiram vantagem apenas será resolvido com a melhoria das condições de vida e de dignidade daqueles que há muito se encontram no limbo do esquecimento, à espera das respostas que tardam a chegar.