Opinião

Por favor, incomodar

Carlos Guimarães Pinto


Independentemente da versão em que acreditemos da história do laptop do adjunto, há algo que deveria preocupar-nos enquanto democratas: a forma como foi tratada pelo Governo uma pessoa incómoda. Sabemos que foram accionados os serviços secretos, que essa pessoa foi ameaçada por eles, que foram espiadas as suas chamadas do telemóvel do ministério, que não lhe foi retirado, sabemos que foi enxovalhada publicamente por dirigentes políticos com mais poder mediático do que ela. Segundo relatos do próprio, foi mesmo passada informação pessoal, como a piscina onde as filhas faziam natação. Tudo isto é aterrador, muito para além deste caso. A questão que fica é se é assim que o Governo trata todas as pessoas incómodas. Será que cada um de nós está sujeito, ultrapassando determinada linha de incómodo, a este tipo de tratamento? Esta preocupação vai muito para além deste caso. É uma ameaça à própria democracia.

Sendo eu deputado da oposição com a obrigação (e, no meu caso, o prazer) de levantar questões incómodas, esta pode parecer uma preocupação egoísta. Mas não é (só) uma preocupação egoísta. É uma preocupação pela democracia. Um país, um governo ou qualquer organização precisam de pessoas incómodas. Seja a motivação ideológica ou de ambição pelo poder (como é o caso das oposições), seja a motivação a procura de audiências ou brio profissional (como é o caso da comunicação social), incomodar é essencial ao escrutínio e bom funcionamento das democracias. Pessoas incómodas, independentemente das suas motivações, são essenciais ao funcionamento de qualquer país ou organização. Até podem estar erradas 95% das vezes, mas nos 5% em que estão certas podem identificar problemas que mais ninguém identificaria e contribuir para fortalecer o país ou organização.

Há uns anos, quando tive de gerir um grande projecto, reunia-me com a direcção do projecto diariamente. Nesse grupo de cerca de dez havia uma pessoa 15 anos mais velha do que eu, não muito feliz por ter um puto de 29 anos a liderar a equipa, que em cada reunião encontrava alguma decisão para criticar. Algumas reuniões demoravam mais 30 minutos do que deveriam para justificar cada uma dessas críticas, muitas absurdas. A certa altura, outros elementos da equipa sugeriram-me que a substituísse para o bom funcionamento da equipa. Rejeitei porque a presença daquela pessoa dava-me a segurança de saber que, se alguma vez cometesse um erro sério, ela certamente o encontraria, nem que fosse para demonstrar ao resto da equipa que era melhor do que eu. Pese embora a restante equipa fosse bastante boa, e também capaz de identificar os meus erros, estava convicto de que alguém obcecado em encontrar erros, mesmo que em 95% dos casos estivesse errado nas suas análises, certamente teria maior probabilidade de encontrar erros grandes se eles viessem a existir. Assim foi. Ainda hoje lhe devo isso.

Uma organização sem pessoas incómodas é uma organização muito mais frágil. Um país sem pessoas incómodas está mais sujeito a ser mal gerido. Uma democracia em que pessoas incómodas são perseguidas não é bem uma democracia.