Opinião

Os desreguladores dos média

Duarte Vicente

Parece um contra-senso, mas é assim: um dos sectores mais opacos e menos escrutinados em Portugal são os média. Existem leis. Existem reguladores. Existem sindicatos. Existem até consórcios e associações para equilibrar o mercado e impedir uma concorrência predatória. E, no entanto, a corda acaba sempre por partir para o lado mais frágil. Não devido a essa condição de fragilidade, mas porque alguém se distrai a afiar os dentes desse lado e acaba por roer a corda, largando os outros no vazio. O que acontece sem que o sector que tem o dever de escrutinar a vida pública faça esse mesmo trabalho a respeito do próprio sector. Saem umas novidades, umas parcerias, um par de entrevistas e vaticínios sobre as aflições dos média, e mais nada. É preciso pôr o dedo nas feridas.

Três exemplos. O primeiro diz respeito ao Governo. Logo no início da pandemia, em Abril de 2020, ficámos a saber que o Estado compraria antecipadamente 15 milhões de euros em publicidade institucional para ajudar os meios de comunicação social. Problema: nem todos eram elegíveis. Os órgãos de informação especializada ficaram de fora, sem apelo nem agravo. Que sobrevivessem sozinhos. Foi o Ministério da Cultura, que tutela o sector, questionado sobre esta opção? É certo que estes meios não são clientes habituais da publicidade institucional. Mas não se tratava de uma medida excepcional para tempos excepcionais? Nos outros sectores com ajudas adicionais, as empresas e entidades que não tinham relações comerciais prévias com o Estado também foram deixadas de fora?

Segundo: no final de Novembro foi anunciado um acordo entre a Associação Portuguesa de Imprensa (API) e o Google segundo o qual a tecnológica paga aos média portugueses para oferecer conteúdo informativo através da Google News Showcase. É uma boa notícia. Contudo, não chega a todos. Nem começa por onde deveria. O secretário de Estado para a Transição Digital, André de Aragão Azevedo, havia pedido atenção à imprensa local e regional, mas os 28 meios que estreiam a plataforma em Portugal são, na sua maioria, de âmbito nacional. Quais foram os critérios que presidiram a esta escolha - e porquê? Publicamente, não sabemos. Em privado, a API, da qual fazem parte muitos meios excluídos, só os comunica se perguntarmos. O critério foi debatido com os associados? Com quais - e porquê? Ou os visados só souberam depois?

Terceiro e último: os reguladores. Aparentemente, está em cima da mesa uma proposta para a alteração do Estatuto do Jornalista - uma iniciativa da Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC), da Comissão da Carteira Profissional de Jornalista (CCPJ) e do Sindicato dos Jornalistas (SJ) que pretende que a lei distinga entre meios jornalísticos e não jornalísticos. Ainda a discussão vai no adro e já a CCPJ age como se esta estivesse vertida em Diário da República, aplicando a lei actual com um entendimento inédito e caricato, e negando o acesso à profissão a jornalistas de gastronomia e lifestyle. Embora não a todos: só os que operam em meios especializados estão a violar a lei, segundo a CCJP - os que escrevem textos em tudo equivalentes em publicações generalistas, não. Entretanto, graças a algum escrutínio, foi possível perceber que esse entendimento da lei está longe de ser consensual tanto entre jornalistas - novos e antigos - como de advogados. Ao longo dos anos, a ERC e a CCPJ sempre foram muito lestas a entrar em contacto com empresas e jornalistas para dar conta de “emolumentos” em atraso ou discrepâncias burocráticas, mas para debater os fundamentos do sector já não são capazes de o fazer (quererão?), em particular com empresas e jornalistas que serão afectados pelas suas decisões à porta fechada. E o Sindicato dos Jornalistas estará a concordar em largar estes jornalistas, parte dos quais sindicalizados, à discricionariedade das empresas quando estes deixarem de ter os seus empregos regulados pelo contrato colectivo de trabalho? Interessante...

Corporativos, opacos e elitistas. Os média são tudo o que exigem que os outros sectores não sejam. E os organismos que deveriam pugnar por outro estado de coisas são os primeiros a optar por excluir em vez de regular, de actualizar ou de criar regras claras para o que de novo vai acontecendo no sector.

O tempo não pára. Seria bom que quem tem responsabilidades também não.