As funções sociais do Estado têm um carácter estrutural dependendo de opções estratégicas de médio e de longo prazo. Faz parte, por isso, do senso comum a importância dos consensos alargados e da continuidade das políticas nas matérias que definem os fundamentos da organização e do funcionamento do Estado. Essa coerência estratégica representa o factor diferencial mais relevante para a qualidade das políticas sectoriais em áreas tão importantes e sensíveis como a educação e a saúde. O impacto das decisões tomadas em cada ciclo eleitoral extravasa em muito o tempo normal de uma legislatura ou de uma maioria política. Este facto explica a razão pela qual se atribui tanta importância à continuidade das políticas em países com elevados níveis de desenvolvimento económico e social. Entre nós, esse consenso tem-se mantido, ao longo do tempo, em matérias de soberania, integração europeia e segurança social. No caso específico da saúde, o largo consenso existente nos cidadãos em torno do Serviço Nacional de Saúde (SNS) não tem sido acompanhado por um entendimento político alargado envolvendo os partidos maioritários dos diferentes lados do espectro parlamentar.
A tentação de fazer das divergências estratégicas em torno do SNS um território para o combate político apenas tem atrasado a implementação de reformas estruturais necessárias há muito tempo. Tem prevalecido a ideia errada de desvalorização das mudanças ocorridas, nas últimas quatro décadas, desde a criação do SNS. Apesar das evidências relativas às alterações da demografia, da morbilidade, das profundas alterações entre o interior, o litoral e as áreas metropolitanas, dos movimentos migratórios e das modificações dos perfis de rendimento e de pobreza, persiste uma narrativa presa ao passado. Tal resulta no aparecimento de propostas avulsas, incoerentes e, nalguns casos, até contraditórias entre si e que apenas contribuirão para um agravamento da entropia burocrática e para o aumento da despesa ineficiente.
A reforma, a transformação, a modernização e o desenvolvimento de um sistema complexo e de elevado valor social, como é o caso do SNS, requerem uma visão coerente, estratégica, de médio e de longo prazo, a qual, por estas mesmas razões, deverá ser consensualizada em espectro político muito alargado. As mudanças feitas sob pressão correm o risco de agravar os problemas, podendo comprometer a sua reversão ou rectificação no futuro. São muitos os exemplos, nas últimas décadas, de medidas erradas cujo impacto se prolongou negativamente ao longo do tempo. O SNS, tal como o conjunto do sistema de saúde dos tempos modernos, é muito diferente do que existia em 1979 tanto no plano do exercício profissional como na sua dimensão tecnológica e digital. A mudança necessária terá de ser sustentada na realidade actual e na projecção da transformação em curso nos sistemas de saúde mais modernos e com melhor desempenho nos diferentes países. Ao invés de insistir em soluções não testadas e fora de tempo, seria bem mais útil aprender com e replicar os melhores exemplos e as melhores práticas existentes nos países da Europa com melhores resultados em saúde.