Opinião

Maníacos dos pedais (e não só)

Nuno Lebreiro


Na cidade onde vivo, Bruxelas, existe uma enorme obsessão por bicicletas. Por todo o lado existem ciclovias e às bicicletas são conferidos direitos especiais: circulam na estrada, nas passadeiras, passam sinais encarnados, andam em ruas de trânsito proibido e podem deslocar-se tanto no sentido do trânsito automóvel como em sentido oposto ao permitido aos carros, inclusive quando as ruas são de sentido único. Ao mesmo tempo, incentiva-se fortemente a utilização da bicicleta, incluindo por pais com filhos bebés, quer em cadeiras especiais, quer em reboques ou acrescentos para o efeito, quer seguindo as crianças nas suas próprias bicicletas, pelas ruas, atrás dos pais.

A razão por detrás de tudo isto é que a bicicleta é tida como um meio de transporte saudável, não poluente e sustentável. E é. No entanto, também é verdade que numa cidade de trânsito caótico como Bruxelas, cheia de automóveis e onde se conduz, regra geral, mal, em muitos locais torna-se perigoso andar de bicicleta: 28% dos mortos na estrada na Bélgica em 2015 foram ciclistas; ou, porque o mal não é apenas belga, no Reino Unido, um ciclista tem 17 vezes mais probabilidades de morrer na estrada do que um automobilista.

Nos últimos anos, a esta situação veio juntar-se o verdadeiro fenómeno das trotinetes, dos monociclos, quer os partilhados quer os adquiridos, isto para não falar dos skates, patins e demais formas de locomoção sobre rodas sem motor. Além do mais, todos estes bi-mono-multi-ciclistas se arvoram a altíssimos patamares morais, parecendo imaginar que, apenas por serem ciclistas, têm mais direitos que os malandros que viajam de automóvel. Um outro exemplo ainda é o transporte de crianças: enquanto num automóvel, mesmo que muito mais seguro – um pequeno embate citadino tem, normalmente, consequências irrisórias para a integridade física dos passageiros –, para transportar uma criança são obrigatórios, por lei, bancos e cadeiras especializados, ajustados, fixados, devidamente certificados por peso, altura e idade, dando o desrespeito da lei lugar a pesadíssimas multas em nome da segurança das crianças, já a exacta mesma criança, numa bicicleta – um meio de transporte em que um pequeno embate citadino poderá muitas vezes ser fatal – não há qualquer regra, e todos vemos, com horror, cadeiras que mal se seguram, não sendo raro os miúdos caírem, escorregarem ou magoarem-se nalguma situação mais perigosa.

No entanto, estes factos não parecem ter impacto algum quer nos cuidados a ter por parte das pessoas, quer em eventuais medidas a tomar por parte das, normalmente noutros casos tão afoitas, “autoridades”. Não seria melhor exigir aos ciclistas um comportamento igualmente responsável, tal como se obriga legalmente aos automobilistas, cumprindo as mesmas regras, fiscalizando o seu cumprimento por forma a garantir a segurança de todos, particularmente a das crianças quando é o caso, em vez de, ao privilegiar por absoluto a bicicleta face aos automóveis, ter como efeito secundário uma menor segurança rodoviária para toda a gente? E o que dizer dos pais que, apesar dos facínoras diversos que poluem as estradas belgas, andam livre e despreocupadamente pelas ruas com os seus filhos como se um calmo e seguro passeio pelo parque fosse? Apenas que não é.

Em suma, ao valor que atribuímos ao facto de a bicicleta ser um meio de transporte mais sustentável não deveríamos contrapor o valor ainda mais importante da segurança rodoviária, especialmente no caso das crianças? E isso não obrigaria a perceber que a defesa por absoluto da bicicleta e a demonização do automóvel não contribui para a segurança rodoviária, incluindo em especial a dos próprios ciclistas?

Muito pelo contrário. Como é apanágio do tempo em que vivemos, vá alguém agora criticar os exageros – atente-se que falo apenas dos exageros, e não da causa em si – absolutistas dos cavaleiros da verdade, neste caso a “verdade” do axioma “os automóveis estão a destruir o planeta Terra”, e será apelidado de “retrógrado”, “burro”, “egoísta” ou, talvez, “assassino ecológico”. Vá alguém reclamar do perigo, em particular para os próprios, que representa a condução absolutamente irresponsável de bicicletas na cidade — como abunda por aqui — e, naturalmente, em caso de acidente, a culpa será do automobilista porque, lá está, é um automobilista, e porque, sendo um automobilista, só pode ser mau, e o outro, o ciclista, apenas porque é um ciclista, então é bom.

Nos entretantos fecham-se as ruas ao trânsito, reduz-se a velocidade normal dos 50 km/h para os 30 km/h “para reduzir emissões de carbono” – uma asneira, já se percebeu, o facto de andar mais devagar em mudança inferior faz gastar mais combustível e aumentar as correspondentes emissões –, por todo o lado se incentiva a fundo a “mobilidade sustentável” subsidiando e privilegiando também as trotinetes, umas traquitanas horrorosas que os displicentes utilizadores largam como brinquedos abandonados por todo o lado, incluindo à nossa porta para que nela se tropece de manhã, ao sair de casa, e tudo isto sem que, nem por um momento, se pare para pensar que, por melhor que seja para o ambiente uma bicicleta, e é verdade que o é, não deixa de ser um valor que deverá ser negociado, complementado e mitigado com outros valores, nomeadamente o da segurança, o da reciprocidade, ou mesmo o da igualdade, que são também fundamentais.

Infelizmente, a esquerda, e boa parte da direita também, recusa-se a aceitar que os valores nunca são absolutos. No entanto, no mundo real, os valores sociais conflituam, colidem, embatem entre si, e cabe ao julgamento humano escolher a forma como quer resolver ou, pelo menos, mitigar, a cada passo, em cada caso, tais conflitos. Trata-se de uma inevitabilidade da condição humana que qualquer um pode verificar por si próprio desde que se muna de algum bom senso. Já no nosso mundo “moderno”, tão cheio de si e da sua superioridade moral face a quem não alinhe com o “consenso” veiculado pelas “autoridades”, muitas das vezes até justificado como sendo uma suposta “verdade científica”, quem desalinha da ortodoxia merece normalmente o opróbrio, o ostracismo e o pelourinho cibernético – ou seja, nesse ambiente histriónico e irreflectido onde comanda a narrativa mediática mais forte imperará tudo menos o bom senso.

No entanto, a essência da democracia encontra-se precisamente no bom senso, consubstanciado na capacidade para negociar conflitos de valores e ideias diferentes, que interessam a diversas pessoas de forma distinta e que podem ter múltiplas resoluções, negociações ou compromissos. Infelizmente, ao assumirmos que a verdade é una, que os valores são absolutos, que aqueles que não concordam com as premissas da moda são “bárbaros”, “retrógrados”, “negacionistas” ou “pouco evoluídos” e que, por serem maus, devem ver as suas ideias desconsideradas, então não estamos apenas a tomar más decisões: estamos, de facto, a matar a democracia – precisamente aquela palavra com a qual os paladinos da verdade única tanto gostam de se benzer.

Este artigo foi sobre bicicletas, é certo, mas, em boa verdade, poderia muito bem ter sido sobre vacinas, máscaras, fontes de energia, geoestratégia, política internacional, a guerra na Ucrânia ou a chapada do Will Smith no palco de um desfile californiano de falsa e superficial virtude. Isto porque, no final, seja qual for o tema, nestes tristes tempos de apagamento histérico, o problema é sempre o mesmo: o triunfo de um novo absolutismo que é incapaz de reflectir sobre a realidade tal e qual ela é, preferindo as certezas absolutas, normativas e moralistas daquilo que, nas cabeças formatadas pelas modas do momento, de forma idealista e infantil, se imagina que o mundo deveria ser – mas não é.