Fernando Pessoa, no seu “Desassossego”, nas primeiras décadas do século XX, argumentava que a razão é a fé que se pode compreender sem fé, mas que não deixa de ser uma fé ainda, isto porque “compreender envolve pressupor que há qualquer coisa compreensível”. Esta ideia não é nova; muito pelo contrário, está na base já de uma antiga discussão sobre razão e fé, começada ainda no século XVIII. A corrente racionalista, desde logo bem alicerçada no pensamento fundador do Iluminismo, sempre gostou de imaginar o homem como um agente acima de tudo racional, capaz de pensamento e decisão neutra, objectiva, independente face ao mundo e que apenas erra, como propôs Voltaire, por estupidez ou maldade.
A contraparte, em larga medida nascida com a reacção romântica a esse mesmo liberalismo, em particular o dos faustos salões de Paris que alimentavam o ressentimento germânico face aos vizinhos, via a vida como uma dança selvagem, como Hamann, vizinho, amigo e némesis filosófico de Kant afirmou, ou por uma perspectiva cultural e evolutiva, como a de Herder, e viria a sedimentar-se, muito depois, na noção de que as coisas não se sabem verdadeiramente, crêem-se ou, seguindo Gadamer, “interpretam-se”.
A fé, no entanto, pode ser vista de diferentes formas. A que nos é mais natural trata-a como um elemento opositor, senão antónimo, mesmo antagónico, da razão. Outra, no entanto, é assumi-la como a verdadeira forma de conhecimento. Numa linha que, com desvios, é certo, segue de Hamann para Jacobi, Herder e, mais tarde, Kierkegaard, há todo um manancial de pensamento que assume a fé como primordial na própria concepção do ser humano – sem fé não há ser humano, mesmo quando este crê tê-la dispensado.
Curiosamente, talvez seguindo Lutero, que se insurgia contra o racionalismo excessivo da Igreja Católica – bem visível no platonismo de Santo Agostinho e na necessidade de conciliação do dogma com Aristóteles em São Tomás –, é precisamente em cristãos desavindos e desalinhados que esse sentimento de exaltação da fé se mostrou mais impressionante. Kierkegaard, por exemplo, alguém que, quase como Pessoa, se escondeu atrás do pseudónimo, não apenas fazia a apologia da fé mas, mais importante, do religioso como a forma mais elevada de existência humana – no caso, definido como a síntese, no sentido hegeliano, entre a estética e a ética.
Essa visão do religioso como o alfa e o ómega da condição existencial humana está muito longe da visão materialista e racionalista que hoje grassa pelo nosso Zeitgeist. Enquanto na nossa visão material, granítica, física do mundo, o religioso é visto como uma relíquia do passado, uma ilusão supersticiosa, narcótica como diria Marx, ou simples projecção psicológica de acordo com Feuerbach, para esta outra visão do mundo as coisas passam-se exactamente ao contrário: o mundo material, esse sim, é ilusório, talvez projecção divina, e o mistério da criação é a única coisa de facto real na experiência humana.
No fundo, o racionalismo materialista aprofundou-se enquanto materialismo, e não racionalismo. Ao contrário da génese platónica – tão bem resumida na alegoria da caverna –, para o racionalismo contemporâneo já nem sequer resta um mundo das formas, um patamar existencial divino onde as respostas se encontram e os opostos se harmonizam. Daí que seja difícil para os pseudocientistas do nosso tempo explicar onde estão as respostas e as leis que conduzem os destinos do Universo.
No entanto, onde o materialismo tudo vê enquanto naturais, senão arbitrárias, combinações matemáticas de átomos, quarks e supercordas, já a perspectiva da fé tudo vê como mágico, divino, supernatural. Kierkegaard reconhecia o poder do cristianismo no paradoxo e no absurdo que a própria figura de Cristo representava: Deus e homem, todo-poderoso e vítima injustiçada, espírito e carne. Já o materialismo abdicou do paradoxo em nome da ciência e ficou-se pelo banal – de que o mundo, simplesmente por existir, apenas porque nos aparece como normal, deixa de ser um milagre para ser uma coisa corriqueira, que não carece de explicação, apenas de displicente aceitação.
Mas a verdade é que ninguém pode reconhecer tal banalização da vida, do Universo e da existência como satisfatória. Pelo contrário, intuitivamente, mesmo que se rejeite a ideia de Deus como criador omnipotente e omnipresente, todos sabemos que a vida e a consciência, o próprio mundo, não poderão nunca ser outra coisa além de supernaturais — não sabemos como foram criadas, nem de onde vieram, ou para onde vão, menos ainda porquê. No mínimo, ao espírito humilde, o reconhecimento da nossa condição de ignorância implica a aceitação do misterioso como a condição primordial da existência. Ora, o misterioso é, por definição, o supernatural, aquilo que, não tendo explicação, nos transcende necessariamente. Assim, mesmo que sem fé, o sobrenatural e a nossa condição subalterna face ao mistério criador universal nunca desaparecem; pelo contrário, antecedem-nos.
No entanto, toda a cultura contemporânea, materialista, hedonista, ultrasuperficial, que formata no digital a nossa experiência existencial, paradoxalmente, assume-se como adversária dessa constatação natural, e inevitável, do carácter supernatural do mundo que nos rodeia. Não apenas se recusa o religioso, ou o espiritual, como um estado desejável, ou necessário, da humanidade, como se relega, com desprezo, para as opções subjectivas dos indivíduos, como se coubesse a cada um de nós o poder de decidir o que o mundo é ou deveria ser.
Se é certo que a forma como nos relacionamos com o absoluto será sempre subjectiva, também não deixa de ser verdade que há algo de objectivo e comum nessa experiência: cada um da sua forma, com maior ou menor desenvoltura, mais ou menos vontade, tem de lidar com os mesmos mistérios, o mesmo desconhecimento, o mesmo abismo negro sobre o qual, periclitantes, nos equilibramos todos numa fina e instável corda.
Assim, a recusa do transcendente no nosso espaço mental cultural, além de uma amputação que, em parte, destrói a possibilidade de completude que deveria nortear todo e qualquer ser humano, também não deixa de ser um projecto fadado ao fracasso: filosófico, desde logo, porque se retirou, mesmo aos mais empedernidos racionalistas, a base supernatural racional em que o seu sistema assentava; social, porque o elemento ordenador da comunidade é a sua comunhão moral de princípios fundadores, comunhão que é impossível se restringida ao mundo intersubjectivo da cacofonia prática do dia-a-dia; finalmente, pessoal e individual também, pois que o chamamento não atendido daquele que vive para o mistério da vida representa a derradeira desresponsabilização ingrata pela oportunidade que outros – os pais, os avós e todos por aí fora até ao Big Bang – nos deram.
Aliás, o chamamento está sempre lá. E o reino do religioso, do absoluto, do misterioso, ou seja, da fé, não deixa de constituir uma das forças mais poderosas, mesmo que inconscientes, do ser humano. A este drive chamou Carl Jung, no início do século XX, instinto religioso – instinto ao qual Jung prescreveu a responsabilidade por uma eterna busca do ser humano por sentido e significado para a sua própria vida. Assim sendo, a transformação de uma vida religiosa – a cristã – numa vida secular, logo material, representa um enorme desafio para a nossa sociedade.
Desde logo, e como Jung advertiu, o ser humano moderno, sem a base religiosa, sente-se perdido em busca de significados. Depois, e como também Freud defendeu em 1927, já depois da sua ruptura com Jung, a religião, ilusória ou não, era a única forma de controlar os instintos autodestrutivos da humanidade. Neste sentido, esses instintos de negação da própria vida, em particular desvalorizando a humana, são cada vez mais evidentes no nosso tempo pós-cristão: da banalização do aborto à advocacia da eutanásia, da ideia de que o homem está a mais no mundo, que é nocivo porque não é natural, até aos anseios apocalípticos consubstanciados em medos e terrores desmedidos, exagerados, de tudo isto se tem feito crescentemente a nossa vida, naquilo a que se pode também chamar, e roubando a expressão a Arendt, uma crescente “banalização do mal”.
O conforto material, a promessa tecnológica de salvação terrena e um anormalmente longo período de paz e segurança criaram a ilusão – arrogante, ignorante, patética – de que ao ser humano basta o ser humano e os seus múltiplos e engenhosos talentos. No entanto, o instinto religioso continua mais forte que nunca, apenas que agora voltado para o bezerro de ouro que veio tomar o lugar deixado vago pelo desaparecimento do cristianismo.
Sem que se aperceba, o homem contemporâneo exalta agora uma nova forma de fé – mais rasteira, menor, de vistas curtas, narcísica e autocongratulatória, material e autodestrutiva, é certo, mas uma espécie de fé, não obstante – que impele ao mergulho pleno no mundo animal, longe de preocupações metafísicas ou espirituais. Afastado do sagrado, agarrado aos instintos, sem respostas, atolado no hedonismo materialista, perdido no carrossel da satisfação plena de todo e qualquer desejo, recusa o homem do século XXI a ansiedade e o receio do misterioso supernatural em nome da certeza molecular e atómica do mundo material.
Infelizmente, essa certeza, como qualquer outro dogma, tornou-se mania, obsessão possessiva, bitola pela qual, junto com o objectivo máximo do prazer, tudo se mede e tudo se faz em nome de um deus menor. Assim se arrasam edifícios, artes, pensamento, tudo o que fez o velho mundo, o cristão, agora terraplanado em nome do novo reino estulto e concupiscente, o anticristão, que, no vazio, imaginamos estar a criar para nós. No entanto, para quem ainda olhe o mundo pelas lentes do misterioso, do absoluto universal, então o nome que se dá ao processo revolucionário em curso é outro muito diferente de qualquer forma de criação – autodestruição, será mais apropriado dizer.
Onde não haja um reconhecimento do supernatural que nos sustenta e, com esse reconhecimento, uma aceitação da nossa condição, não pode haver edifício que se auto-sustente. E assim se vai comprovando: nas nossas democracias cada vez mais esvaziadas de princípios, nas nossas liberdades e garantias que se esboroam em nome de certezas apocalípticas, na ordem liberal que, vulnerável, abana e tropeça, agora acossada por autocracias e ditaduras concorrentes.
No mesmo “Desassossego”, Pessoa também escreveu que, no mundo contemporâneo, “o direito a viver e a triunfar conquista-se quase pelos mesmos processos que se conquista o internamento no manicómio: a incapacidade de pensar, a amoralidade, e a hiperexcitação”.
Tinha razão.