No próximo dia 29 de Maio, há exactos 570 anos, em 1473, num domingo de Pentecostes, Constantinopla caiu. Após 53 dias de cerco, os exércitos de Maomé II entraram na cidade e puseram fim ao milenar Império Romano. Enquanto a cidade caía, os teólogos dentro das muralhas, iluminados pelo pentecostal Espírito Santo, discutiam qual seria o sexo dos anjos. Mas quando Maomé II transferiu a capital do Império Otomano de Edirne para Constantinopla, a profícua discussão foi interrompida.
A cristandade deu lugar à Europa e, recentemente, ao denominado Ocidente alargado. Os novos teólogos, ainda dentro de muralhas, retomaram a discussão interrompida de forma mais elaborada e esclarecida. Claro está, em 1473 estava-se longe de imaginar que o sexo é uma construção social e que a simplicidade do macho e da fêmea é, afinal, um conceito reaccionário.
Em boa verdade, não existem só anjos. Existem anjos e anjas. E existem anjos fêmeas e anjas machos, e existem também seres que ora são anjos, ora são anjas, consoante a hora do dia e da noite. E há também anjos que se acham hermafroditas, binários e trinários, e outros há ainda que, não sendo nada disso, são o contrário de tudo o que venha a ser estabelecido a cada momento. É, por isso, absolutamente vital que as mentes esclarecidas se preocupem com tão nobre tema, sob pena de a verdade não ser descoberta. E como só a verdade é revolucionária, o materialismo dialéctico histórico deu lugar ao espiritualismo multiléctico efabulástico.
A Turquia, herdeira do Império Otomano, tem tentado, por diversas vezes, entrar de novo na Europa. A primeira incursão de adesão à CEE remonta a 1959 e, desde então, muitas outras tentativas falharam. Curiosamente, o maior apoiante da entrada da Turquia na UE era o Reino Unido, país que sempre manteve com a Europa uma relação dúbia. Com o Brexit, a Europa perdeu a sua componente marítima, e a Turquia o seu mais cínico aliado.
Recep Tayyip Erdogan lidera a Turquia desde 2003 e, talvez em resposta aos sucessivos fracassos no assalto às muralhas de Bruxelas, desenvolveu o que designou por neo-otomanismo. O neo-otomanismo pretende devolver a Turquia à sua zona de conforto, entre a Europa e a Ásia, no Cáucaso Sul, Golfo Pérsico, Golfo de Áden e norte de África. E este é o contexto que permite entender o alinhamento entre a Turquia e a Rússia. O acordo dos cereais, por exemplo, não é mais que a divisão e partilha de controlo do Mar Negro entre turcos e russos, tornando completamente irrelevante a presença da UE naquela bacia marítima.
A Turquia e a Rússia concebem-se como Estados-civilização. Do mesmo modo, o mandarinato chinês e a Índia também são Estados-civilização. Estes grandes blocos posicionam-se hoje para um novo desenho global do mundo e têm um denominador comum: a clara identificação e protecção do que consideram ser os interesses fundamentais da sua “civilização”. Ora, para os Estados-civilização, os Estados-nação são vistos como um empecilho.
O denominado Ocidente alargado assenta em Estados-nação, Estados esses incapazes de se protegerem dos Estados-civilização que lhes entram portas adentro. No entanto, o Ocidente tem uma inegável vantagem sobre os segundos: a superior intelectualidade que é capaz de discernir, como nenhuma outra, qual o sexo dos anjos e das anjas ao mesmo tempo que ousa afirmar-se descaboucando os seus próprios fundamentos civilizacionais.