O capitão Renault, colaboracionista francês interpretado pelo actor britânico Claude Rains em “Casablanca”, conquistou um lugar entre as personagens marcantes da sétima arte graças à frase “round up the usual suspects”, traduzível por “arrebanhem os suspeitos do costume”. Assim resolvia o representante do regime de Pétain na cidade marroquina qualquer problema de segurança, pois haveria sempre alguém a quem culpar pela perturbação da ordem.
Dito isto, nesse clássico de Hollywood, um filme de propaganda que Humphrey Bogart, Ingrid Bergman e o zeitgeist de 1942 elevaram muito acima das expectativas da Warner, existe uma outra frase emblemática proferida pelo capitão Renault. Quando o major nazi ordena que o estabelecimento nocturno de Rick, o norte-americano que “não arrisca o pescoço por ninguém”, seja encerrado, vingando-se por “A Marselhesa” ter silenciado uma canção germânica, o francês diz-se “chocado”, repetindo o “shocked” para enfatizar, que “haja jogo a decorrer ali”, instantes antes de o croupier lhe entregar em mãos “os ganhos da noite”.
Advertindo desde logo, para acautelar o risco de acusação de ofensa a figura de Estado ou de excomunhão - mais difícil para quem nem é católico, mas nunca se sabe... -, que não se pretende aqui chamar colaboracionista de nazis a nenhum envolvido na polémica que agita Portugal, as reacções da Presidência da República e da Igreja Católica às notícias sobre o custo do altar-palco que será construído para a Jornada Mundial da Juventude (JMJ) fazem recordar o choque da personagem de “Casablanca” ao ordenar o encerramento do Rick’s Café Américain.
Na hora de assumir um gasto de mais de quatro milhões de euros, que subiram até aos cinco (ou mais), graças à empreitada paralela das fundações para edificar a infra-estrutura, Portugal tornou-se um rectângulo de chocados. Após o Patriarcado de Lisboa dizer que o Presidente da República tinha conhecimento do custo do palco, Marcelo Rebelo de Sousa retorquiu que só soube “informalmente”, através dos jornalistas. E logo o bispo auxiliar de Lisboa, D. Américo Aguiar, presidente da Fundação JMJ, disse que, num contexto de dificuldades económicas para as famílias, o valor em causa “magoou-nos a todos”, pelo que será necessário “pedir para serem eliminadas” todas as parcelas do projecto que não sejam essenciais. Até porque a Igreja e a Fundação não se sentiam “na obrigação de saber” o montante da adjudicação.
Em terra de capitães Renault, e na presença daqueles a que se costuma designar “suspeitos do costume”, com a intersecção de autarquias e construtoras, ver Carlos Moedas a “dar o corpo às balas” foi uma lufada de ar fresco. Visto que em seu redor já haviam esgotado as reservas de “choque” disponíveis, o presidente da Câmara de Lisboa assumiu que a autarquia gastará um total de 35 milhões de euros, deixou farpas ao antecessor Fernando Medina e ao omnipresente José Sá Fernandes, e assumiu um projecto que não é só seu. Mas que, de repente, assim pareceu.