Opinião

A insustentável leveza das comissões desportivas

Jorge Máximo


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60 milhões de euros! Este foi o valor de comissões que a FPF reportou como tendo sido pagas pelos clubes portugueses aos agentes e intermediários desportivos no período decorrido entre abril de 2020 e março de 2021. Ou seja, mesmo no ano em que a Pandemia Covid-19 fechou os estádios aos adeptos e as receitas dos clubes caíram de forma abruta, os clubes portugueses pagaram em comissões de intermediação de jogadores um montante equivalente a 150% do valor total consignado para o Desporto no Orçamento de Estado de 2021! Uma enormidade financeira numa indústria cronicamente deficitária e onde só os 3 maiores clubes nacionais, responsáveis pelo pagamento de 45 milhões de euros daquelas comissões, apresentam passivos que ascendem a cerca 1,2 mil milhões de euros!

Vem isto a propósito da recente prisão para interrogatório de Luis Filipe Vieira, presidente do S.L. Benfica, por, entre outros alegados crimes, ter orquestrado e beneficiado de um esquema de inflacionamento artificial das comissões sobre transações de jogadores em conluio com o agente desportivo que os representava, e contra os interesse do próprio clube que preside.

A confirmar-se a acusação, será mais um importante motivo para consciencializar o sistema desportivo e os reguladores nacionais para a necessidade de reforço dos mecanismos de transparência e de controlo que combatam os riscos de corrupção e branqueamento de capitais associados a uma perigosa realidade que vemos enraizada há vários anos: a excessiva promiscuidade nas relações entre dirigentes desportivos dos clubes e agentes desportivos intermediários de jogadores, e as avultadas comissões que lhes pagam, mesmo sobre jogadores para os quais não se entende a utilidade desportiva da sua contratação, ou que são imediatamente cedidos em empréstimos a outros clubes. Um ecossistema perfeito que favorece oportunidades de negócios obscuros e riscos de fraude e corrupção envolvendo ligações dissimuladas a redes internacionais de agentes, complexas cláusulas sobre direitos conexos, foros jurídicos convenientes, paraísos fiscais e muitos milhões de euros.

Por paixão clubística, todos toleramos que futebol seja uma indústria onde os princípios da microeconomia e as leis racionalidade económica não se apliquem. O escrutínio é sobretudo emocional. Os adeptos não querem saber de resultados económicos ou da sustentabilidade financeira futura, apenas exigem resultados desportivos, preferencialmente imediatos. Desde que se ganhe ninguém questiona a razoabilidade de se pagarem comissões em montantes superiores à totalidade da bilhética de uma época desportiva normal! Mesmo quando não se ganha, também não há problema. Quantas enormes e caras promessas não se traduziram em rotundos falhanços? Conhecem dirigentes que tenham sido responsabilizados por isso? Claro que não! Bastaram-lhes culpar o treinador, assumir o prejuízo e contratar outros novos jogadores.

De acordo com o índice KPMG Player valuation, o valor de mercado atual dos 10 jogadores de futebol mais valiosos da atualidade supera já os 1,2 mil milhões de euros. Mas qual será o seu valor daqui a 1 ano? Que segurança de estabilidade e rentabilidade tem verdadeiramente aquele valor? Basta uma lesão, uma época menos conseguida, a não qualificação para uma competição importante, ou surgirem outros jogadores em destaque para que os seus valores acumulados caiam centenas de milhões de euros. Todos sabem que é assim, mas todos os anos os valores de mercado médios dos jogadores continuam a aumentar. Há que alimentar uma conveniente bolha insaciável, porque quando se aumenta o valor dos melhores, também se inflaciona o valor dos piores. E esses são muitos, e dão a ganhar dinheiro a muita gente. O racional é simples. Se o jogador é caro, é porque deve ser bom. E quanto maior transferência, maior a comissão. Mas quem é que avalia o valor real dos jogadores de futebol e inflaciona o mercado de transferências? Os agentes desportivos, pois claro!

Nos últimos anos o Match-fixing, nome pela qual é conhecido o crime associado à viciação e combinação prévia de resultados desportivos, tem dominado a preocupação do sistema desportivo em matéria de criminalidade no desporto, destronando o tema do doping em competições desportivas. Portugal ratificou em 2019 a Convenção do Conselho da Europa sobre a Manipulação de Competições Desportivas cujas medidas são o essencial da Estratégia Nacional AntiCorrupção 2020-2024 no que se refere ao desporto. Mas aquela estratégia nada refere sobre como combater os riscos de fraude e corrupção no pagamento de comissões a agentes desportivos! É uma omissão grave que demonstra que este problema continua a ser desvalorizado.

Restam-nos os deveres de vigilância das autoridades federativas e os reguladores de mercado, e a Lei n.º 83/2017 que transpõe a diretiva de combate ao branqueamento de capitais e sujeita ao cumprimento dos deveres nela previstos, “os profissionais que intervenham em operações de alienação e aquisição de direitos sobre praticantes de atividades desportivas profissionais”, desde que exerçam a sua atividade em território nacional. Parece pouco e de difícil controlo pelas autoridades competentes.

Há assim que continuar a reforçar os mecanismos de controlo que garantam maior fundamentação do valor da transação, melhor rastreio dos beneficiários efetivos, e maior divulgação pública do pagamento de comissões a agentes desportivos. Mas não deve ser só uma obrigação regulatória, os próprios adeptos dos clubes devem também estar na linha da frente desta exigência, questionado, nos fóruns próprios, os seus dirigentes do racional económico e desportivo de certas operações. Só exigindo transparência e escrutinando os seus dirigentes é que protegem o futuro dos seus clubes. Citando o célebre romancista irlandês James Joyce, “Tudo é caro de mais quando não é necessário”.

Ingenuamente, tal como na política partidária, no desporto continuamos a dar maior atenção às promessas do que se vai fazer, do que à avaliação do legado do que foi feito. Para muitos, não há lugar à desconfiança. Para o ano é que vai ser. Se ele promete há que acreditar. O clube é a sua paixão, e os seus dirigentes os seus pastores. De repente, uma decisão do tribunal fá-los acordar de uma hipnose pueril e fantasiosa para se confrontarem para a dureza de uma realidade que negavam impetuosamente. Outros virão prometendo ser diferentes, mas basta começarem com o discurso hipnótico para conquistarem a confiança incondicional dos adeptos mais apaixonados, e tudo pode voltar ao início.

O mediatismo da prisão de LFV é uma enorme oportunidade para um profundo debate sobre as a racionalidade económica dos preços de transferência de jogadores e das comissões aos agentes que os representam. É urgente que os clubes de futebol passem a eleger estruturas independentes que monitorizem o cumprimento da legalidade daquelas transações e tenham autonomia e capacidade para articularem diretamente com as autoridades judiciais. Este é o momento. Se o deixarmos passar estamos a pactuar com a cultura vigente, e a perder uma excelente oportunidade de mudar mentalidades. E isso não é Smart.