Um supersénior cujo pensamento não cabe em partidos políticos
Vê-se gestor, não político, e diz que a sua missão ao serviço do país se cumpriu nos dois anos como ministro das Finanças. Mas não deixa de pensar o país e de partilhar a sua visão. Eduardo Catroga jurou que nunca se reformaria. E após os 70 anos continua a cumprir a promessa.
As pessoas identificam-me como político, mas eu nunca o fui. Gosto de pensar o país, mas sempre tive uma visão demasiado independente para casar em espartilhos partidários, nunca andei nessas ações por aí”, diz-me pouco depois de nos sentarmos à mesa d’O Madeirense, que Manuel Fernandes preparou com o esmero de um anfitrião de mão cheia para o almoço.
A chegar aos 81 anos, Eduardo Catroga é a personificação do tipo de homem que viu descrito nas páginas do Le Figaro – umas das muitas publicações europeias cuja leitura diária não falha. O supersénior.
“É muito interessante, baseia-se num artigo científico da Nature que estuda pessoas que, mesmo não estando na melhor forma física – como eu, apesar dos esforços do meu PT, que duas vezes por semana me obriga a mexer – têm um cérebro, uma capacidade de raciocínio e memória equivalentes a metade da idade. Eu gostava de ser assim, um supersénior!”, diz-me, meio crente de que cumpre os requisitos, meio a desejar mantê-los e melhorá-los.
É essa lucidez que ainda revela na análise que faz do país – a contragosto da família. “Estão sempre a dizer-me que não fale tanto”, ri-se, “mas eu não me cansarei de fazer a pedagogia da minha visão. Posso estar errado, mas é a minha, independente de patrões.” O diagnóstico é equilibrado entre “gente muito válida no país e sinais muito positivos nas empresas, nas pessoas, nas universidades; e outros muito negativos nas administrações públicas e no governo”. Critica a morosidade pouco eficiente da justiça, uma administração pública gorda e burocrática e a estagnação da competitividade, a falta de ambição para aproveitar os esforços notáveis das empresas e investir para crescer mais. Mas elogia que os socialistas tenham entendido, “depois de terem levado o país à falência três vezes, a importância das contas certas – ainda que lhes falte incorporar as contas externas, fundamentais em contexto de competição europeia”.
“Os meus amigos de esquerda, que sempre tiveram dificuldade em engolir Cavaco – porque se consideram os donos naturais do poder e veem aquela década como uma usurpação do poder – ficam lixados quando lhes digo isto. Em 25 anos, eles governaram 18. Ora quando veio o 25 de Abril, nós estávamos a 59% do nível de vida dos países mais desenvolvidos da Europa; em 1985, passámos a 56% – dos objetivos do 25 de Abril, democratizar, descolonizar e desenvolver, o último nunca foi alcançado; e com Cavaco Silva passámos a 69%. Hoje estamos nos 72%, ou seja, progredimos muito pouco em quase 30 anos, por falta de políticas económicas integradas e coerentes. Os socialistas ainda não aprenderam a gerir uma economia de mercado, são retrógrados e conservacionistas, não progressistas. Só pensam na lógica de conservação do poder.”
Sete convites, seis recusas
A conversa fluida e a capacidade com que salta entre a própria vida e a análise do país, entre as memórias e o diagnóstico da atualidade, são comparáveis à leveza com que pontua com gargalhadas os episódios mais caricatos que relata. É um homem livre. Um supersénior.
Pedimos cabrito assado no forno com batatinhas e legumes, um copo de vinho para refrescar e vamo-nos entretendo com o bolo do caco com manteiga de alho que se faz ali com todo o preceito da ilha. Eduardo Catroga tem casa perto da praia da Coelha e quando se senta comigo já leva um pequeno-almoço com jornais lidos no Mercado de Albufeira e a viagem de quase 300 km nos afazeres do dia. Diz-me que teve a sorte de ter uma carreira em três dimensões: “A empresarial, a universidade e as missões cívicas ao serviço da política.” E é aí que logo encarreira que foi “talvez das pessoas mais assediadas para o governo” e das que mais resistiram. Em sete convites para cargos, só aceitou o terceiro de Cavaco Silva, porque lho tinha prometido, tornando-se ministro das Finanças nos últimos dois anos de governo (1993-95) do também ex-Presidente da República.
O primeiro desafio veio no primeiro governo constitucional de Mário Soares, para secretário de Estado de Sousa Gomes nas Finanças. O segundo para o governo de independentes montado por Nobre da Costa – “Ramalho Eanes estava farto das querelas partidárias e quis fazer um governo de iniciativa presidencial e fui convidado para os Assuntos Sociais, coisa de que não percebia nada”, conta, explicando que só ultrapassou a insistência depois de prometer pensar. “Não era a minha vontade”, diz, dando uma gargalhada quando acaba de explicar que uma hérnia discal o ajudou a escapar à primeira “sondagem forte” de Cavaco Silva, que o queria na Agricultura a substituir Álvaro Barreto. Rejeitou nova tentativa do “amigo Aníbal”, quando desafiado a escolher entre as Obras Públicas e o Comércio e Turismo (seriam ocupadas as pastas por Ferreira do Amaral e Faria de Oliveira) e a abordagem que se seguiu para substituir António Borges no Banco de Portugal (BdP) – que entrara em litígio com o ministro das Finanças. “Quando recusei, prometi-lhe que, se voltasse a precisar de mim para o governo, aceitaria. Desde que o desafio fosse motivante. Chegado o verão de 1993, recebeu uma chamada para visitar o amigo na famosa vivenda Mariani, seguida de comentário à sua mais recente escolha de férias. “Disse-me: um economista não faz férias em dezembro, muito menos em destinos tropicais”, ri-se.
Cavaco cozinhou a ideia durante seis meses: em outubro fez-lhe chegar o OE1994 e questionou se a promessa estava de pé; na véspera do 1.º de Dezembro, chamou-o à Lapa e anunciou que ia fazer “um pequeno ajustamento no governo” e contava com ele para as Finanças, mas devia guardar reserva até o assunto ser levado ao Presidente. Foi anunciado três dias depois, para total surpresa até da família, a quem nada dissera. “Estava o facto consumado, não puderam dizer nada. Nem os meus pais tiveram tempo de reagir”, nova gargalhada.
Pergunto se gostou desses tempos e admite que sim, “foi uma missão importante. Gostei de vestir a camisola nacional – até aí, eu só pensara em termos empresariais e aquilo era diferente, era pensar os interesses do país, como ir à seleção. Só tive pena de não ter estado mais dois anos, isso tinha permitido colher totalmente os frutos da estratégia que desenhei e que o eng.º Guterres colheu e desaproveitou.”
A cartada de Bagão Félix
Apesar das travessas e atalhos da conversa, com o delicioso cabrito assado a tomar-nos a atenção a tempos, não perdeu o fio à meada e resume mais duas tentativas de o trazer à governação. Convidou-o Santana Lopes para ministro de Estado e das Finanças – “foi preciso hora e meia para conseguir dizer não – ele tem uma conversa muito atrativa… Mas eu tinha regressado às empresas depois de uma passagem pela política e de um autoimposto período de nojo (saiu em 1995 do governo e só voltou ao ativo em 2000) e não me fazia sentido regressar ao governo depois de voltar às empresas. Eticamente não era correto, não me sentia bem.” Outros tempos…
O problema resolver-se-ia sozinho: Santana tivera a informação de Paulo Portas de que Bagão Félix recusava sentar-se à mesma mesa que Catroga. Por fim, foi Passos Coelho que o quis para ministro de Estado e da Economia – preparara-lhe, entre março e julho, uma proposta de programa para duas legislaturas, de onde iria sair o programa eleitoral quando houvesse eleições. Sócrates definhava, a crise alastrava, as taxas de risco e juro escalavam, Grécia e Irlanda tinham caído e era evidente o que vinha. “Mas tudo tem um tempo. Eu tinha cumprido a minha missão.”
Volto atrás: era verdade que Bagão Félix não se sentaria com ele? “Quando eu era ministro, ele era vice-governador do BdP e havia uma crise de liderança por causa da doença do governador, Miguel Beleza. Um dia, o Bagão veio falar comigo e ficou nítido que havia divergências internas, tinha uma animosidade com o Costa Pinto, o homem dos Mercados Financeiros. Eu tinha luz verde para substituir a administração depois das europeias e antes de o fazer falei com todos os administradores pessoalmente, para explicar porque saíam ou ficavam. Ele não estava cá e tive de lhe explicar por telefone que não ficaria porque o governador escolhera o Costa Pinto. Ele nunca me perdoou e jogou a sua cartada política na altura de Santana fazer governo. Portas queria Economia ou Finanças: lá foram repescar o Álvaro Barreto, com os seus cabelos brancos, para a Economia e puseram o Bagão Félix nas Finanças.”
De “criança selvagem” a gestor
Eduardo Catroga nasceu na aldeia de São Miguel do Rio Torto, a sete quilómetros de Abrantes, em novembro de 1942 – freguesia de lugarejos, mas com uma mãe que estudara até ao liceu e um pai “self-made man, um homem de carisma, apesar de ter só a 4.ª classe, que trabalhou nas cortiças e foi fazendo vida e acumulando capital”, descreve. Teve uma infância feliz. “Éramos totalmente livres, quase selvagens: andávamos sempre na rua, jogávamos à pata ou futebol, íamos aos pássaros… e só quando via a furgoneta do meu pai é que ia a correr para casa.”
Na aldeia de 4 mil habitantes, só duas crianças por ano tinham condições para continuar a estudar e ele tinha dez anos quando fez a sua escolha: em vez de seguir para o colégio em Tomar, que o pai desejava, optou (com o devido consentimento paterno) pela recém-inaugurada Escola Industrial e Comercial de Abrantes, onde fez amigos com quem ainda tem tertúlias preciosas e a cuja Associação de Antigos Alunos preside. Cumpre 70 anos, apesar de a escola não ter sobrevivido à Revolução, “um erro estratégico deste país, que, em vez de adaptar essas escolas ao contexto, as encerrou por considerá-las ‘menores’ e nunca apostou no ensino técnico-profissional.”
Após quatro anos dessa formação que ainda valoriza, seguiu a solo para Lisboa – o pai pagava-lhe a estada e o acolhimento numa família conhecida, com quem se foi integrando; ia aos jogos do Benfica (clube do anfitrião), mas também do seu Sporting, correu os cinemas da cidade. “Foi uma vida muito rica, mas sempre que podia voltava à aldeia; cheguei a ir no comboio dos correios, que chegava às quatro da manhã!” Batia a saudade de casa. Até chegar à faculdade (formou-se em Economia em 1966, no Instituto Superior de Ciências Económicas e Financeiras, hoje ISEG, que deu o seu nome ao átrio principal da universidade). “Aos 17 anos, emancipei-me. Já conhecia e gostava de aqui estar”, ri-se. Ainda regressava para as férias em família, juntando amigos na praia da Nazaré, com quem convivia nas festas populares, junto às barraquinhas, iam a bailes e passeavam no picadeiro. As famílias ribatejanas mudavam-se para ali em agosto, bem como algumas de Lisboa, que alugavam casas às nazarenas – a antiga e informal versão de alojamento local. Foi nesse contexto que conheceu a mulher e se apaixonaram. Viriam a casar-se um ano depois de se licenciar. “Fui pai aos 24 anos e avô aos 48”, orgulha-se, sem esconder quanto aprecia os programas com as duas filhas, as viagens com os quatro netos (entre os 32 e os 25 anos). “Gosto muito de viajar! Fizemos safaris em África, visitámos o Egito… Antes da pandemia dei a volta ao mundo com a minha neta mais velha: fizemos Lisboa-Roma-Singapura-Melbourne-Nova Zelândia-Polinésia Francesa.”
Na hora de tomar opções, decidiu não seguir a carreira académica pura, optando pela gestão – “as finanças eram muito mais prestigiantes, mas a minha vocação eram as empresas, uma área a precisar de grande desenvolvimento e para a qual acho que contribuí.” Fê-lo como gestor – aos 32 anos era CFO da CUF, foi CEO da SAPEC, passou pela administração da BP e da EDP –, mas também como professor, que aceitou ser numa “cadeira estratégica e em pós-laboral, para conciliar com a gestão”. Ali aplicou a prática e a teoria, reforçada em 1979 com uma passagem pela Harvard Business School. Sem falsas modéstias, conta que na licenciatura teve uma vida dura porque fixou para si próprio objetivos rigorosos: “Queria ser o primeiro do curso, e fui, ex-eaquo com o meu amigo António Pinto Barbosa. Tive imensos prémios escolares, mas lutava por isso.” Na verdade, continua a somá-los, do reconhecimento emérito pela Ordem dos Economistas ao friso de notáveis abrantinos, do busto que ganhou na sua aldeia à Grã Cruz da Ordem de Cristo.
Já com o meu café e o bolo de mel enviado pelo anfitrião, com o vinho Madeira para o brinde final, confirma que continua muito ativo. “Aos 65 anos, exerci o meu direito financeiro adquirido (à pensão) e fui-me adaptando ao que me apetece fazer.” Preferindo a “conversa com jovens à dos velhos”, lidera várias associações, é presidente da universidade EDP (formação de quadros específicos para as áreas de intervenção da empresa), mantém a ligação à Nutrinveste e ao banco Finantia, fundado por um aluno em 1987, pertence ao board do Fundo Europeu de Investimentos. E ainda ajuda a gerir a herança do pai, que inclui património imobiliário em Lisboa e 56 hectares na Comporta. Aos sete anos, Eduardo disse que não iria reformar-se. E até hoje cumpre a promessa.
Artigo originalmente publicado na edição do NOVO de 5 de agosto