Triunfos do Grupo das Caldas da Rainha e de Bastinhas
Casa cheia e um espetáculo cultural ímpar, garantido por artistas de mão cheia, numa noite inspirada. Pedro Balé faz a crónica da corrida de Nossa Senhora da Assunção, nas Caldas da Rainha.
Na tarde do passado dia 15 de agosto, teve lugar a tradicional corrida da Nossa Senhora da Assunção na bela e centenária Praça de Toiros das Caldas da Rainha, que esgotou de público as suas bancadas com uma afición consistente, numa simbiose patrícia e forasteira, conterrânea e veraneante. Lidaram-se toiros de Vinhas, de bom jogo, e com um cartel forte a cavalo, António Ribeiro Telles, Francisco Palha e Marcos Bastinhas, com o incentivo especial de pegar em solitário o Grupo de Forcados Amadores das Caldas da Rainha, comemorando o seu trigésimo aniversário.
No dia 23 de julho de 1944, os aliados bombardeiam a cidade costeira alemã de Kiel. Nesse mesmo dia, Manuel Rodriguez “Manolete” toureia em Valência um toiro de José María Escobar, um toiro negro, “lucero”, com uma mancha branca em forma de “V” no seu testuz e de nome “Perdigón”. Nesse tempo, até em Espanha se sabe que o “V” se converteu no sinal da futura vitória aliada, graças a uma fotografia divulgada em toda a imprensa do primeiro ministro britânico Winston Churchill fazendo um “V” com os seus dedos médio e indicador. A cabeça do “Perdigón” acabaria em Londres, enviada ao próprio Churchill pela mão do próprio ganadeiro, pertencente a uma família anglófila, uma vez finalizada a guerra e com a mediação do Irlandês Walter Starkie, director do British Council em Espanha e espião do Império, amigo de Belmonte e grande aficionado,. Como conta Fernándo Gonzalez Viñas no libro biográfico do Califa de Córdova, aquele ganadero escreveu a seguinte mensagem:
«Como velho amigo de Inglaterra, senti convosco a angústia dos dias tristes e obscuros por que esse país passou até que com a luz do seu cérebro, o seu coração e o seu povo, começaram a dissipar-se as trevas de Inglaterra y do mundo e terminou com a vitória que salvou os homens de boa vontade».
De igual forma, Churchill respondeu com dois telegramas, um primeiro a Escobar agradecendo-lhe o gesto e, um mês depois. em 29 de maio de 1946, ao próprio Manolete, com o seguinte texto:
«Caro Senhor Manolete
Recebi faz algum tempo a cabeça de um magnífico touro que me enviou o seu criador, senhor Don José María Escobar. O toiro tem um “V” claramente marcado no seu testuz, e disseram-me que você o matou em Valência. Quero agradecer-lhe pela parte que lhe coube em facilitar que fosse eu o receptor desta expressão verdadeiramente agradável de amizade e boa vontade de Espanha. Por favor aceite as minhas felicitações pelo feliz resultado do que deverá ter sido uma exigente luta.
Seu atentamente,
Winston Churchill».*
Também com um toiro assim iniciou Francisco Palha o seu labor, um belo exemplar negro bragado e “lucero”, com um “V” claramente marcado na frente, com 525 kg, que sem ser bravo, começou reservado e veio em crescendo ao longo da lide. Depois de um terceiro comprido ao estribo e com alguma emoção, nos curtos destacaram-se o primeiro, igualmente ao estribo, depois de uma colocação a ladear com “hermosina” por dentro e que o público aplaudiu e mereceu música; e, outrossim, de boa nota foram os terceiros e quarto, mas sem redondear faena. No seu segundo e quarto da ordem, um toiro “cardeño” bragado, com 450 Kg, reservado e de investida desigual, a faena de Francisco começou da melhor forma com os curtos, o primeiro a atacar de largo com o hastado colocado na porta dos cavalos e com muita verdade, num terreno de compromisso, prosseguindo com uma brega à garupa cingida, deixando-o nos curros e abordando-o em curto logrou um ferro com valor ao estribo e rematado com excelência por dentro. O quinto e último foi igualmente de boa nota, mas com o toiro a defender-se. Terminou adornando-se com um violino e um “palmo” que o público aplaudiu.
A António Ribeiro Telles coube o pior lote, com um primeiro toiro “cardeño” e bragado de Vinhas, com 645 kg, “cornicorto” e também “lucero”, onde não foi possível fazer luzir o seu toureio. No seu segundo e quinto da ordem, com 520 Kg, nobre e manejável, mas faltando alguma “codícia” na investida, cravou um segundo curto de enorme qualidade e justificou continuar a lide ao som de “Gallito”. O quarto e o quinto curtos foram ferros muito ao seu estilo e que chegaram cá acima. O toureiro da Torrinha tem nesta cidade um público fiel, onde já o pai era figura, e que sabe premiar a sua entrega, o seu labor.
A Marco Bastinhas tocou muito melhor sorte, com um terceiro toiro, “berrendo en negro” e calçado dos posteriores, com 550 Kg, nobre e colaborante, desde logo recebido com uma porta gaiola muito emocionante, com uma brega excelente e rematada com um bom primeiro comprido. Nos curtos andou um pouco desigual, sofrendo um toque no segundo, e terminando com um violino e um palmo sem especial relevância, mas que agradou ao público. Com o sexto da tarde, cardo e bravo, com 520 kg, com uma saída de rompante que conquistou os tendidos, sacou o de Elvas uma faena redonda. Ficou-nos na retina o câmbio muito cingido do segundo curto e um terceiro e quinto de apoteose, com o público completamente entregue, dando volta a final debaixo de fortíssima ovação, acompanhado do ganadeiro.
Forcados
Em solitário, o Grupo de Forcados Amadores das Caldas da Rainha, com cerca de oitenta elementos novos e antigos fardados em praça, em data de trigésimo aniversário, atuando numa corrida séria, que aqui e ali se revelou dura e que exigia competência, esteve muito maduro e consistente, revelando valor, graça, solidariedade e eficácia dos seus elementos no ultrapassar das dificuldades que se lhes puseram e no aproveitar a qualidade e diversidade das investidas dos oponentes. Com quatro pegas à primeira, a atuação do Grupo conheceu os seu momentos culminantes na pega do ex-cabo Francisco Mascarenhas, com duas tentativas enormes – que revelaram as duas tonalidades fortes de uma pega de caras, a arte e a técnica, por um lado, o valor e a capacidade de entreajuda do Grupo, por outra – e, outrossim, na emoção da levada a efeito por Francisco Rebelo de Andrade e na perfeição técnica da derradeira, em que foi protagonista o atual cabo Duarte Manoel.
Atuaram:
1.º Francisco Mascarenhas, de caras, à segunda tentativa: depois de uma primeira tentativa, com o toiro em frente aos curros e nas tábuas, chamando de largo, sereno e com elegância, parando nos médios e enchendo a cara ao toiro, para o carregar com decisão e fazendo-o investir quando quis. Marcou o tempo de mandar a investida e recuou no tempo adequado, equilibrado e certo, fechando-se primorosamente à córnea, com o toiro a ganhar velocidade na viagem e despedindo as ajudas contra as tábuas, flectindo em seguida para a direita e a rodar, com o forcado a aguentar sozinho três derrotes fortíssimos e quedando-se quase inanimado no solo, tendo o seu colega José Maria Machado evitado que fosse novamente colhido, cobrindo-o estoicamente com o seu corpo e evitando que, por duas vezes, fosse aquele o alvo da cornada. Francisco levantou-se muito combalido e surgiu a dúvida nos tendidos se iria regressar. Ganhou alento e voltou a chamar o toiro, tendo-o colocado no mesmo terreno, mas encurtando a distância da chamada, entrando nos seus terrenos. Encheu-lhe de novo a cara e carregou-o com garbo e decisão, recuando bem e fechando-se seguramente à córnea, desta feita com uma primeira ajuda mais carregada e com o Grupo a ajudar em bloco e a submeter o hastado sem chegar à tábuas. (volta)
2.º António Appleton, de caras, à primeira tentativa, que, chamando de largo frente aos curros e, parando nos médios, carrega com determinação, esperando o toiro numa investida muito forte sem praticamente recuar um passo, fechando-se com segurança e à barbela, sem derrotes na viagem e tendo sido eficazmente ajudado pelo Grupo, resultando a pega emocionante. (volta)
3.º Joaquim Lino, de caras, à terceira tentativa, colocando, na primeira tentativa, o toiro frente aos curro e em tábuas, chamou de largo, carregou e recuou bem, mas com uma reunião a meia altura e com uma mangada violenta com o corno direito, que o não deixou recuperar, saindo praticamente na reunião e antes de o primeiro ajuda poder intervir; na segunda tentativa, com a mesma colocação, desta feita com o toiro a reunir ainda mais alto e com um derrote mais forte, uma vez mais não permitindo nem reunir nem consumar; à terceira, agora colocando-o em frente e não obstante o toiro continuar a reunir alto, o forcado logrou fechar-se à córnea, com uma ajuda mais próxima e eficaz do Grupo. (volta)
4.º Francisco Rebelo de Andrade, de caras, à primeira tentativa, colocando o toiro nos tércios frente aos curros, chamando dos médios e carregando forte, recuou no tempo e velocidades certos, fechando-se à barbela num abraço perfeito, sem derrotes na viagem, sendo ajudado com eficácia pelo Grupo. (volta e chamada aos médios)
5.º Duarte Palha, de caras, à primeira tentativa, colocando o toiro frente aos curros e em tábuas, chamando de largo e esperando nos médios um oponente que investiu a passo e, depois, “a choto” e a medir, carregando e mandando na investida e fechando-se seguramente à barbela, sem derrotes na viagem e com ajuda eficaz até às tábuas. (volta)
6.º Duarte Manoel (cabo), de caras, à primeira tentativa, colocando o toiro frente aos curros e quase em tábuas, chamando de largo e lentamente, quedando-se nos médios e enchendo a cara a toiro, carregando e recuando bem perante uma investida forte, fechando-se num ápice e com segurança à córnea, aguentando dois fortes derrotes com ajuda eficaz das ajudas até às tábuas. (volta)
Síntese da Corrida
Praça de Toiros das Caldas da Rainha, 15de Agosto.
4.ª Corrida “Coparias”. Praça esgotada
Direção: Dra. Ana Pimenta, coadjuvada pelo médico veterinário, Dr. José Luís Cruz.
Toiros: todos de Vinhas: 1.º- n.º 25, 525 Kg; 2.º- n.º 23, 580 Kg; 3.º- n.º 22, 550 Kg; 4.º- n.º 30, 450 Kg; 5.º- n.º 38, 520 Kg; 6.º – n.º 18, 520 Kg (volta do ganadeiro neste último).
Cavaleiros: António Ribeiro Telles, de verde garrafa e ouro (volta e volta); Marcos Bastinhas, de verde claro e ouro, (volta e volta) e Francisco Palha, de azul e ouro (volta e volta).
Forcados: Amadores das Caldas da Rainha: Francisco Mascarenhas, à segunda tentativa (volta); António Appleton, à primeira (volta); Joaquim Lino, à terceira (volta); Francisco Rebelo de Andrade, à primeira (volta e ida aos médios); Duarte Palha, à primeira (volta) e Duarte Manoel, à primeira (volta).
No início da corrida foi guardado um minuto de silêncio em memória do ganadeiro D. Eduardo Guedes de Queiroz, Conde de Cabral, recentemente falecido a 12 de agosto. No intervalo, foi prestada homenagem ao cavaleiro António Ribeiro Telles pelos seus quarenta anos de alternativa e ao Grupo de Forcados das Caldas da Rainha pelo seu trigésimo aniversário.
* (Fontes: «Manolete, biografía de un sinvivir», Fernándo Gonzalez Viñas, ed. books4pocket; “Manolete y Churchill: historia de una carta”, Álvaro R. del Moral, in ElCorreo de Andalucia; “La desconocida relación entre Manolete y Winston Churchill: la carta que destapó el vínculo torero-político”, Patricia Blásquez Serna, in Cope, Historia Noticias”; “Telegramas famosos. telegrama de Churchill a Manolete”, abc.es, in Telegrafista.es; “La historia entre Winston Churchill y Manolete”, Imanol Sánchez.com).