Sócrates reclama herança política de Mário Soares
Antigo primeiro-ministro acusa PS de perverter princípios. No seu novo livro, cita várias vezes o fundador do partido como referência ética e moral da esquerda democrática. E conclui: “Havia proximidade de temperamento entre nós.”
José Sócrates não tem dúvidas: o actual PS vem renegando o combate pelas liberdades que em 1975 o tornou na força política dominante em Portugal.
“A direcção do partido não honrou a sua Declaração de Princípios: ‘O Partido Socialista considera primaciais a defesa dos direitos, liberdades e garantias fundamentais dos cidadãos.’ Ao negar esses valores, e não apenas por omissão, o PS abandonou conscientemente a principal referência da sua cultura política.” Acusação feita por Sócrates no seu novo livro, intitulado Só Agora Começou.
Neste ensaio memorialístico de 153 páginas, o antigo chefe do Governo diz-se vítima “de uma aliança entre dois submundos, o do jornalismo e o da justiça”. Mas também não poupa críticas à liderança socialista – incluindo António Costa, nunca designado pelo nome – por lhe negar solidariedade.
Sócrates invoca 40 anos de militância no partido, que liderou entre 2004 e 2011, para se considerar digno deste apoio. E deixa claro que foi com “um esgar de repulsa” que em 2018 ouviu o presidente do PS, Carlos César, proferir esta declaração: “Ficamos muito entristecidos e até enraivecidos com isto, com as pessoas que se aproveitam dos partidos políticos e nomeadamente do nosso e tenham comportamentos desta natureza e dimensão.”
Sentiu-se alvejado. Foi a gota de água transbordar o copo: nesse dia decidiu rasgar o cartão de militante. Antes, aliás, “a situação já estava apodrecida”. Dizer adeus ao PS acabou por gerar nele uma “sensação de alívio”. Com a convicção reforçada de que o partido “abandonou conscientemente a principal referência da sua cultura política”, traindo a sua identidade.
Mas se é óbvia a intenção de marcar distâncias com o actual Partido Socialista, não é menos evidente que Sócrates reclama a herança política de Mário Soares. No livro, faz várias referências elogiosas ao fundador do PS, falecido em Janeiro de 2017.
“Já passei por isto”, disse-lhe Soares
“Há homens que não sabem morrer. (…) Quando partem, não é a sua morte que sobra em nós, mas a sua vida, grande demais para acabar. É assim que recordo Mário Soares”, escreve o antigo chefe do Governo. Lembrando o apoio incondicional que o fundador do PS lhe deu desde o dia em que foi detido no âmbito da Operação Marquês. “Já passei por isto”, disse Soares na primeira visita que lhe fez ao estabelecimento prisional de Évora, numa equiparação às detenções de que fora alvo durante o Estado Novo.
Sócrates reproduz uma carta que Soares lhe escreveu para a prisão logo após o seu 90.º aniversário, em Dezembro de 2014.
“Cada vez o admiro mais. A sua coragem e firmeza ética levam-me – e aos nossos imensos camaradas – a considerá-lo como uma grande figura do socialismo democrático que sempre foi e é. Por isso também o estimam tanto.” Palavras do antigo Chefe do Estado, transcritas no livro. E às quais Sócrates acrescenta estas linhas: “Ainda hoje esta carta me emociona. Ela constitui um grato momento nesses tempos sombrios. O seu significado político é tão forte que acharam que isto não podia ficar assim, tratando de a desmerecer e depreciar em todas as oportunidades e de várias formas.”
Fala como um herdeiro político do soarismo, ungido pelo patriarca fundador. Enquanto reclama “uma ligação afectiva aos militantes do partido”. Como se ainda estivesse dentro, mesmo estando fora.
Sócrates revela que começou a sentir-se muito próximo de Soares na fracassada campanha presidencial do antigo Presidente, em 2006: “O bom companheirismo que tivemos a partir daí resultou da dureza da campanha, é certo, mas, gosto de pensar, essa camaradagem resultou também de uma certa proximidade de temperamento entre nós.”
Recorda ainda uma conversa com Soares em que lhe sugeriu que escrevesse as memórias. E logo ouviu esta réplica: “Isso é para quem está acabado. Não é o nosso caso.”
Queira ou não queira, António Costa pode ficar com a certeza: ele vai andar por aí.