Sendo bastante sincero, a maior dificuldade que encontrei ao escrever esta crónica foi a de escolher a introdução certa. Afinal, são as primeiras palavras que escrevo para este jornal e sou daqueles que valoriza imenso as primeiras impressões.
Na raiz dessa dificuldade está a minha insistência em querer evitar o (agora) clichê tantas vezes escrito e reescrito no último ano: de que vivemos numa pandemia que abalou por completo a forma como funcionamos enquanto sociedade.
Eu sei, já enjoa ler isto! Essa minha insistência parte exatamente por querer evitar a náusea que estas palavras já provocam. A verdade (outro clichê) é que estamos todos enjoados, fartos e exaustos de falar, ler e escrever sobre esta pandemia, mas por mais que tente fugir é inevitável reconhecer este elefante que é a covid-19 porque colocou a céu aberto o esgoto de problemas estruturais até agora evitados, incluindo aquele que escolhi como foco desta crónica: a ausência de acesso a uma estrutura pública e de qualidade para os cuidados de saúde mental.
Entre vários factos, o mais preocupante é que um em cada cinco portugueses sofre de uma perturbação psiquiátrica. Contrastamos isto com o facto de que o rácio de psicólogos nos centros de saúde, no SNS, ser apenas de 2,5 psicólogos por 100 mil habitantes.
Pensando melhor, escrever que a pandemia “abalou por completo a forma como funcionamos enquanto sociedade” é mais um desejo do que uma realidade. Fosse o abalo realmente forte, talvez a nossa classe política deixaria finalmente de tratar o problema da saúde mental apenas com remendos ou a passo de caracol.
É facto que tem sido feito um esforço na contratação de mais psicólogos para as escolas públicas e que a criação de uma linha de acompanhamento psicológico no SNS 24 foi importante. Não tiro valor a estas duas vitórias, mas também é facto que serviços em tempos com dois a três meses de espera para uma consulta, ultrapassam agora um tempo de espera de quase um ano. É facto, que mesmo antes da pandemia já haviam locais em que os tempos de espera por uma consulta de psicologia chegavam aos 4 anos. É facto, o mais flagrante, que dos 24 mil psicólogos agora em Portugal, apenas mil se encontram no Serviço Nacional de Saúde e só 250 nos Cuidados de Saúde Primários.
No meio do atual clima político caótico recheado de debates, entrevistas e jogadas, com várias frentes que se estendem desde os Estados de Emergência, Autárquicas até à Operação Marquês, foram as palavras do atual Bastonário da Ordem dos Psicólogos que mais me chocaram nos últimos meses. Quando questionado se “houve, durante este tempo, algum incentivo ou tentativa para se criar um plano estratégico geral capaz de fazer face aos problemas psicológicos lançados pela pandemia” a sua resposta foi “não tenho conhecimento de qualquer plano dessa natureza… a única coisa de que tenho conhecimento é que existe uma tentativa ou uma intenção de, finalmente, concluir-se algumas das ações que estão previstas no programa nacional de saúde mental mas que, diga-se, estão por concluir há muitos anos.”
Ao ler isto, despertou-se em mim uma irritação. Uma irritação que aumentou quando li que faltam até psicólogos na DGS e nas reuniões de peritos com o governo para combater a pandemia. Estou farto, porque embora já tenha ouvido sair da boca de vários dirigentes dos vários partidos políticos o reconhecimento de que o estado da saúde mental dos portugueses é “um problema”, nenhum partido o trata como a emergência que é. Julgam a saúde mental como um problema de pouca prioridade ou evitam-no porque talvez queiram esquivar-se ao inevitável: que vai ser preciso gastar muito dinheiro para construirmos a rede de cuidados que tanto precisamos.
Numa entrevista conduzida pela jornalista Ana Isabel Fernandes, o Bastonário acabou então por fazer o desabafo que me fez escrever esta crónica: “existem em Portugal 24 mil psicólogos. Acha que faz grande impacto estarmos aqui a discutir se vão entrar 40, 50, 60 ou mesmo 100 psicólogos para os centros de saúde? Não tem grande impacto.”
Há uma certa Direita que tenta justificar o subfinanciamento público com a velha máxima “não podemos atirar dinheiro para os problemas”. Há uma certa Esquerda que confunde a necessidade de um Estado Social forte com a insistência num Estado Empresarial disfuncional que atira dinheiro público para negócios ruinosos. Numa altura em que tanto se debate onde o Estado deve estar e até onde deve ir, eu defendo que deve estar em peso quando uma consulta de psicologia no privado é para a larga maioria dos portugueses um “luxo”. Eu defendo que se atire dinheiro, muito, para a contratação massificada e remuneração competitiva de psicólogos para o Serviço Nacional de Saúde. Enquanto a falta crônica de meios humanos for uma realidade, tudo o resto é quase irrelevante.
O Estado deve garantir a igualdade de oportunidades para todos, sejamos ricos ou pobres. Num país onde o acesso a um psicólogo é negado a alguém pela impossibilidade financeira, é um país sem igualdade de oportunidades. Enquanto houver jovens condenados a filas de espera intermináveis por uma mera consulta de psicologia, o Estado falhou. Enquanto a insuficiência crônica de oferta pública de cuidados de saúde continuar a empurrar pacientes para o privado, por desespero, e assim roubar grandes fatias dos orçamentos familiares para consultas e tratamentos, pouco importam os remendos de campanha ou os tais “40, 50, 60 ou mesmo 100”. Enquanto o suicídio for a segunda causa de morte para os jovens (entre os 15 e os 29 anos) e a depressão o caminho para esse fim trágico, então a minha geração e as seguintes continuarão a gritar: que se atire dinheiro para o problema!
Um Estado que se empenha em não falhar onde nem deveria estar, falha quase sempre onde mais é preciso.