Tenho pelos generais Luís Araujo e Pinto Ramalho e pelo almirante Melo Gomes a maior das considerações. São militares de grande craveira, serviram Portugal como poucos. As suas opiniões são sempre muito relevantes no que à defesa e à segurança dizem respeito.
Porém, a posição que têm vindo a assumir, sobre as alterações à Lei Orgânica das Bases da Organização das Forças Armadas e à Lei de Defesa Nacional e que visam a consagração de um novo comando superior assumido pelo Chefe do Estado Maior General das Forças Armadas, não podem merecer a minha concordância enquanto parlamentar e investigador na área da defesa nacional.
Olhemos para os argumentos mais referidos e encontremos neles o racional que poderia levar à sua ponderação.
1. A reforma que agora se propõe vem seguir, mal, a estrutura que a maior parte dos países na NATO já adotou.
A nossa política externa assenta na nossa opção europeia, na nossa presença no mundo enquanto história e enquanto língua e, muito relevante, na opção Atlântica que se revela na nossa presença na Organização do Tratado Atlântico.
Portugal recebeu um contributo enorme da NATO na valorização dos seus quadros, tendo passado, pelas suas imensas dimensões, militares tão relevantes como Humberto Delgado. Faz sentido, sempre fez sentido, que a nossa estrutura militar doméstica se encaixe nos modelos mais usados nesta frente livre e promotora de paz, como faz sentido que a nossa presença, no contexto das estruturas de comando, não conceda dúvidas e se alinhe, claramente, com as restantes representações castrenses.
Espanha fez, há muitos anos e sem a contestação que verificamos hoje em Portugal, a sua transformação, assumido o Chefe do Estado Maior de Defesa a centralidade da decisão operacional.
2. Os chefes dos Ramos perdem a sua ligação ao poder político, deixam de poder “negociar” os meios com os diversos ministros da Defesa Nacional, secundarizam-se perante um outro Chefe.
Portugal ainda vive a dimensão simbólica da estrutura militar advinda da Guerra Colonial, assiste à descompensação de meios entre os Ramos, multiplica áreas que devem ser hoje, até pela segurança que devem merecer, concentradas.
Não quero ser memorizador do universo castrense, mas a existência de várias estruturas de música em cada ramo não pode deixar de ser questionada no tempo presente. Como não pode deixar de ser relevante uma centralização das novas vocações digitais e de cibersegurança que recebem, na maior parte dos países europeus, uma atenção do mais relevante comando operacional.
3. Há tantas urgências nas forças armadas que não se compreende a opção.
Este argumento não é novo. A cada tempo, com Fernando Nogueira, Aguiar Branco ou João Cravinho ele sempre é aduzido. Mas não pode ser valorizado.
Claro que há problemas de efetivos; claro que há problemas de natureza remuneratória; claro que há obrigações com os meios. Mas governar não é alinhar os problemas fazendo depender uns da resolução dos outros.
As nossas forças armadas carecem de mais meios humanos e de mais recursos financeiros, mas, ao mesmo tempo, carecem da reinvenção das carreiras, de uma nova reponderação da quadrícula, de uma outra forma de recrutamento.
Os quadros técnicos, como também acontece em alguns países da União Europeia, não precisam de vir diretamente das Academias, no mundo de hoje é inconcebível que ainda existam oficiais, saídos da entidade formadora máxima, que assumem o destino de se quedarem pela burocracia hierarquizada nascida nas cadeiras da Administração Militar.
4. A reforma retira capacidade de informação e conhecimento aos Ramos.
Este é o argumento mais disparatado que podemos encontrar na contestação. Todos os relatórios da NATO, que avaliaram o processo de valorização estratégica e operacional nas estruturas concentradas, dizem o contrário.
Os Ramos não vão deixar de ter os seus Chefes de Estado Maior com amplo universo de competências e com capacidade de implicação da estrutura política no universo dos planos de reequipamento. Como também não vão deixar de ter uma ligação especial ao comandante supremo que é o Presidente da República.
Há, contudo, como se verificou nos processos mais recentes que implicaram o Exército Português, a necessidade de uma outra atenção a matérias que, tratadas no minifúndio dos Ramos, acabam por criar danos de credibilidade ao universo reverente das Forças Armadas.
5. A iniciativa do Governo faz cessar o equilíbrio histórico dos Ramos.
O general Valença Pinto, que comandou o Exército e foi Chefe do Estado Maior General das Forças Armadas, deu bem nota, no seu exercício, que um dos problemas que se vivia, vive, na estrutura militar é a ausência de equilíbrio estratégico e operacional entre os Ramos. O almirante Melo Gomes e o general Luís Araujo saberão, melhor que todos, como isso é verdadeiro. As leis de programação não têm resolvido, talvez até tenham ampliado, as barreiras à capacidade operacional da Armada e da Força Aérea.
Por outro lado, o Exército assume a maior das passividades na sua modernização, na sua capacidade de cortar a direito nos custos ociosos que sempre comportou, mesmo depois de todas as reformas. Uma comparação entre o Exército português o seu congénere belga, país mais rico mas com uma dimensão populacional e territorial próxima da portuguesa, dir-nos-á sobre o caminho que ainda temos para fazer.
A reforma que o Governo apresentou ao país não está feita tendo como referenciais os atuais protagonistas políticos e militares. Está, isso sim, construída para dar um novo tempo à capacidade estratégica e operacional. Talvez o desempenho extraordinário que temos verificado na emergente campanha nacional de vacinação Covid19 nos possa ajudar a ver melhor o futuro.
Espero que se possa consagrar no parlamento, com os acertos que ainda possam faltar, uma ampla maioria que negue qualquer aproveitamento partidário desta relevante reforma.
*Gestor e político