Protecionismo é o último risco para a alimentação

Alterações climáticas e tensões geopolíticas levam ao aumento dos preços e fazemcom que os países produtores queiram limitar vendas ao exterior. São os países menos desenvolvidos quem mais sofre com o protecionismo, que acaba por afetar todos.

A Índia decidiu, a 20 de julho, impor restrições às exportações de arroz não basmati, justificando-o com a seca e a falta de água, que levaram a aumentos de 18% dos preços na produção, mas fê-lo também três dias depois de a Rússia ter saído do acordo de distribuição de cereais pelo Mar Negro, o que gerou receios de escassez nos mercados.

A decisão da Índia constitui um forte exemplo de como as tensões geopolíticas e as alterações climáticas estão a instigar o protecionismo alimentar, o que leva ao aumento dos preços e a situações de escassez.

Segundo a Organização das Nações Unidas para o Comércio e o Desenvolvimento (UNCTAD, acrónimo em inglês), os preços dos alimentos têm aumentado de forma consistente, uma tendência que começou com a pandemia de covid-19, mas que acelerou com a invasão russa da Ucrânia.

“É evidente que choques mais frequentes e graves, incluindo secas, inundações e tensões geopolíticas, podem afetar negativamente a produção agrícola e prejudicar as cadeias de abastecimento alimentar nacionais e globais, limitando, assim, potencialmente, a disponibilidade de alimentos tanto a nível nacional como internacional, com consequências negativas para a segurança alimentar dos países e das pessoas mais vulneráveis”, diz ao NOVO Máximo Torero, economista-chefe da Organização para a Alimentação e Agricultura (FAO, no acrónimo em inglês).

“Num sistema económico globalizado e profundamente interdependente, choques abruptos e disruptivos, sejam eles climáticos, geopolíticos ou de outra natureza, têm um impacto imediato nas cadeias de abastecimento e, por consequência, nos consumidores”, diz ao NOVO Luís Pinheiro, CEO da Lusomorango, organização de produção de pequenos frutos, essencialmente para exportação. “Estamos a assistir a alterações aceleradas nos padrões climáticos, desde períodos prolongados de seca a subidas das temperaturas em várias geografias e eventos extremos que ameaçam a previsibilidade na produção de alimentos”, acrescenta.

Esta situação, em que as ameaças se multiplicam, faz com que os países produtores resistam a vender alimentos, com receio de que a escassez faça aumentar os preços de forma significativa ou leve mesmo a interrupções da oferta.

Pelo menos 104 milhões de pessoas são afetadas por conflitos em 13 países menos desenvolvidos.

“Não há dúvida de que a escassez na produção de alimentos pode levar a políticas protecionistas por parte dos governos. A escassez de alimentos cria preocupações sobre a segurança alimentar em termos de disponibilidade e acesso”, diz Máximo Torero, apontando, no entanto, que “embora possa oferecer uma solução a curto prazo, o protecionismo pode ser muito dispendioso a médio e longo prazo”.

Uma análise da FAO mostrou que, entre 2007 e março de 2011, 33 dos 105 países analisados recorreram a restrições à exportação de alimentos.

“É necessário notar que, embora a motivação para a introdução de tais medidas esteja ligada a preocupações legítimas, tais como garantir o abastecimento interno, a estabilidade dos preços e a segurança nacional, as restrições à exportação podem ter repercussões tanto a nível nacional como a nível mundial, com efeitos negativos especialmente sobre países em desenvolvimento importadores líquidos de alimentos. O protecionismo pode minar o papel dos mercados globais e levar a relações económicas e políticas tensas entre parceiros comerciais”, avisa Torero.

Mais pobres, mais afetados
Voltando ao exemplo da Índia, o país é o maior exportador mundial de arroz e foi responsável, em 2022, por cerca de 40% do comércio internacional daquela que é a terceira maior cultura cerealífera do mundo e que alimenta mais de metade da população humana. Numa análise, a Geopolitical Futures refere que, apesar de a Índia continuar a exportar arroz vaporizado e basmati, os preços globais dos alimentos aumentaram entre 15% e 25% desde a proibição. “Dada a elevada vulnerabilidade dos arrozais na Ásia ao El Niño, as preocupações começaram a crescer noutros grandes países produtores e exportadores de arroz da região. Alguns destes países começaram mesmo a criar reservas em antecipação de uma potencial escassez”, acrescenta a agência especializada em geoestratégia. Acrescenta que os efeitos desta situação são de longo alcance, atingindo países da Ásia, África e Médio Oriente, que dependem das importações de arroz indiano para satisfazer as suas necessidades alimentares, mas a escassez também poderá afetar o trigo, a soja e o milho, que frequentemente substituem o arroz, servindo tanto o consumo humano como as necessidades de alimentação do gado.

O Banco Mundial estimou que, entre 2006 e 2008, o efeito agregado do comportamento de isolamento de preços de todos os países foi um aumento de 52% no preço internacional do arroz e um aumento de 18% nos preços do trigo e do milho, exacerbando ainda mais a situação global de crise dos preços dos alimentos.

“É, portanto, essencial que os governos equilibrem cuidadosamente os seus objetivos de curto prazo com as potenciais consequências a longo prazo das medidas protecionistas”, sublinha ao NOVO o economista-chefe da FAO.

Os mais afetados por este tipo de situação são os países em desenvolvimento que têm recursos limitados para apoiar a modernização dos seus sectores agrícolas e para promover o crescimento sustentável da produtividade. Segundo os dados do Banco Mundial, de julho deste ano, a pressão sobre os preços sente-se de forma mais acentuada nos países de rendimento baixo e médio.

“A insegurança alimentar – populações com prevalência da subnutrição – é significativamente maior do que antes da pandemia, atingindo perto de 800 milhões de pessoas”, diz ao NOVO Eduardo Diniz, diretor-geral do GPP – Gabinete de Planeamento, Políticas e Administração Geral do Ministério da Agricultura e da Alimentação.

A União Europeia e também Portugal registam, da mesma forma, valores de inflação alimentar, mas menos acentuados, com França e Alemanha nos 14%, Espanha com 10% e Portugal com 8%. “Os níveis de inflação no mercado alimentar português estão em alinhamento com o bloco europeu, registando flutuações nos preços alimentares que provêm de tendências internacionais com mais de um ano e meio e que tiveram o seu pico em meados de 2022”, diz Eduardo Diniz.

Portugal tem uma elevada dependência do mercado internacional no abastecimento de matérias-primas, nomeadamente de cereais para a alimentação animal e moagem, e em janeiro deste ano registou um défice de cereais. “Em regra, Portugal importa cerca de 80% de milho com origem em países terceiros e o restante de origem intra-UE, e a quase totalidade do trigo é proveniente do mercado europeu, particularmente França”, explica Diniz. No caso do milho, o peso relativo da Ucrânia caiu para metade, tendo sido de 17% no ano passado, com o Brasil a compensar, com um aumento para 52%.

O risco de escassez não é perentório, mas Luís Pinheiro diz que não pode ser completamente ignorado. “Acredito que em Portugal, no curto prazo, não corramos esse risco em concreto”, considera, mas aponta que, principalmente no que respeita ao preço, “devemos estar atentos ao que está a acontecer à produção nas várias regiões que abastecem sobretudo com produtos frescos o mercado europeu, incluindo Portugal”. “Por exemplo, o sul de Espanha está com severas restrições no acesso a água e Marrocos tem tido um verão com vários eventos de temperaturas extremas, o que pode vir a comprometer produções de outono e inverno. Há que acompanhar de perto o que se passa e antecipar possíveis choques na cadeia de abastecimento”, avisa.

Minimizar o risco
O objetivo passa, assim, por minimizar riscos para alcançar sistemas agroalimentares resilientes e sustentáveis e garantir a segurança alimentar global. O relatório do Estado da Alimentação e da Agricultura de 2021, da FAO, analisa as vulnerabilidades das cadeias de abastecimento alimentar e a forma como as famílias rurais lidam com riscos e choques; e discute opções para minimizar os compromissos que a construção da resiliência pode ter com a eficiência e a inclusão. O objetivo é oferecer orientação sobre políticas para aumentar a resiliência da cadeia de abastecimento alimentar, apoiar os meios de subsistência no sistema agroalimentar e, face a perturbações, garantir o acesso sustentável a alimentos suficientes, seguros e nutritivos para todos.

“Devemos aumentar a resiliência dos sistemas agroalimentares globais. Para isso, a longo prazo, precisamos de melhorar os sistemas de alerta precoce e de ação precoce e aumentar a transparência do mercado através do fornecimento de dados e informações atualizados e credíveis, permitindo que os países tomem decisões políticas atempadas e informadas”, defende Máximo Torero. “É essencial criar sistemas de alerta precoce para ajudar as partes interessadas a tomarem medidas preventivas atempadas”, sublinha, acrescentando ainda ser “fundamental” aumentar a capacidade de absorção de riscos pelos países. Finalmente, “também precisamos de aumentar a produtividade de forma sustentável e de acelerar o comércio”.

Eduardo Diniz destaca três áreas em que é necessária a atuação pública: “Por um lado, a promoção e disseminação de tecnologia para uma intensificação sustentável e adaptar os fatores aos riscos”; depois, “evitar os bloqueios do mercado internacional do comércio de alimentos e matérias-primas base”; finalmente, desenvolver infraestruturas, “nomeadamente, irrigação, conectividade digital, transportes, armazenagem de frio”.

O grande risco, diz Luís Pinheiro ao NOVO, “são os efeitos das alterações climáticas ultrapassarem as nossas respostas”.

“Claramente, Portugal necessita de se concentrar na gestão do recurso água e, para isso, são necessários investimentos estruturantes”, conclui.