O insustentável peso da palavra genocídio
Pela primeira vez, um presidente americano admitiu que foi um “genocídio” a morte de 1,5 milhões de arménios que viviam no império otomano. Os massacres começaram em Abril de 1915.
O presidente Joe Biden usou o termo “genocídio” para se referir ao massacre dos arménios do império otomano. Estima-se que tenham morrido 1,5 milhões de pessoas nesta tragédia, que começou há 106 anos, a 24 de Abril de 1915. Foi a primeira vez que um presidente americano fez tal declaração, provocando uma reação imediata do presidente da Turquia, Recep Erdogan, para quem a declaração tem “impacto destrutivo”. Refira-se que Portugal é um dos países que reconhecem o genocídio arménio. A Turquia fala em “ferida” na relação com o aliado americano e chamou a Ancara o seu embaixador em Washington, em sinal de irritação.
A polémica tem sobretudo a ver com orgulho nacional e memória histórica. Os turcos recusam a ideia de ter existido genocídio e usam a palavra “massacres”, contabilizando um máximo de 300 mil vítimas. Os historiadores turcos aceitam que houve atrocidades e dizem que a intenção das autoridades otomanas era afastar as populações arménias das fronteiras com o império russo. Havia o contexto da Primeira Guerra Mundial e não ocorreu uma limpeza étnica com motivos militares, mas excesso de zelo dos governadores locais.
O negacionismo do genocídio colide com uma massa de factos. A decisão de aniquilar os arménios veio do topo. As atrocidades começaram em Constantinopla, com o extermínio de centenas de intelectuais arménios que tinham uma posição prestigiada no império. A partir dali foi lançada uma campanha sistemática de detenção de todos os arménios que viviam em províncias que confinavam com o império russo.
Na limpeza étnica que se seguiu, os otomanos mataram os homens e deportaram mulheres, crianças e velhos para longe das suas comunidades, em horríveis marchas de morte. Houve violações em massa e tortura indiscriminada. As mulheres que resistiram às marchas forçadas foram escravizadas ou deixadas sem comida e água no deserto da Síria.
O genocídio teve numerosas testemunhas que assistiram às deportações e relataram os horrores, sobretudo ocidentais, vindos de países neutros ou de aliados do império otomano. A opinião pública da época soube do que se estava a passar. Em 1916, os ingleses publicaram um relatório, o Livro Azul, sobre o Tratamento dos Arménios no Império Otomano, da autoria do visconde Bryce e do famoso historiador Arnold Toynbee. Esta compilação é porventura um dos livros cruciais do século XX e um dos mais difíceis de ler.
Por exemplo, a descrição feita por um professor alemão, do que se passava ao lado da sua própria escola: “Há aqui raparigas e mulheres e crianças, praticamente nuas, algumas prostradas no chão, outras dando o último suspiro junto aos caixões feitos de propósito para elas. Das duas ou três mil mulheres camponesas trazidas para aqui do planalto arménio em boa saúde, restam quarenta ou cinquenta esqueletos”.
O livro de Bryce e Toynbee está cheio destes relatos. Numa página pode encontrar-se aquela que foi talvez a primeira reportagem sobre o tema, escrita por Henry Wood, da agência americana United Press, a 14 de Agosto de 1915: “as atrocidades contra os Arménios começaram há três meses, mas só agora chegam a Constantinopla informações vindas do interior que mostram não haver nenhuma porção da população arménia que tenha sido poupada”. Seguem-se exemplos que Wood tinha conhecido e, depois, o despacho conta que as famílias eram separadas, os homens para um lado, as mulheres e crianças para outro, tudo feito de maneira a tornar “praticamente impossível, em milhares de casos, que estas famílias alguma vez se voltem a reunir”.
Uma fonte estrangeira contava o que vira em Bayburt, cidade que tinha sido esvaziada de todos os seus habitantes arménios: “o terceiro grupo [de deportados] tinha entre quatro mil e cinco mil pessoas. Passados seis dias, todos os homens com menos de quinze anos tinham sido assassinados”. Em muitos casos, nem as conversões ao Islão permitiram aos arménios salvar as suas vidas.
Outro testemunho incluído no livro azul: “Não resta nenhum arménio nas províncias de Erzeroum, Trebizond, Sivas, Harpout, Bitlis e Diyarbekir. Cerca de um milhão dos arménios destas províncias foram deportados das suas casas e enviados para sul. As deportações foram sistemáticas e começaram em Abril [de 1915]”.
A narrativa é terrível, as autoridades tinham desarmado as famílias, usando criminosos saídos das prisões, houve homicídios e brutalidade, os homens foram mortos, toda a propriedade confiscada, as mulheres mais bonitas foram vendidas a muçulmanos e os desgraçados que restavam, quase só mulheres e crianças, “foram postos em marcha, esfomeados e sem provisões, para morrerem de fome, a não ser que antes disso fossem atacados por bandidos”.