Somos cumprimentados à chegada pelo anfitrião Manuel Fernandes, que se desdobra entre os que vêm para almoçar no seu Madeirense, e encaminhados para a mesa que nos reservou sem vizinhos. Carlos Tavares acaba de chegar de Colares, onde passa estes meses de maior calor aproveitando o ar livre e a calma da paisagem. O que não o impede de cumprir os ensaios de música, sua paixão maior, que nunca falha e que há apenas dias o levou a palco em Paredes de Coura, com o seu professor de guitarra, João Santos, a convite de uma amiga, professora da Universidade do Minho, de cujo pai musicou alguns poemas e que agora lhe pediu que os entoasse em homenagem.
É um homem calmo como o tom que usa para conversar e mesmo as graças que se vai permitindo aos poucos mantêm o ritmo ponderado. Esse perfil é herança do pai, relojoeiro que comprou a ourivesaria onde trabalhou toda a vida, até depois dos 90 anos, e cujo sonho – cumprido aos 12 anos de Carlos – era ter a sua casa, em Estarreja. Ainda lá está, essa casa onde o antigo ministro da Economia e presidente da CMVM cresceu e foi feliz, em serões caseiros com os pais, pontuados a música.
Diz que agora vive “em regime de quase voluntariado”, a estudar e produzir pensamento económico, como gosta. Só lamenta que essa missão de pensar o país, que originou vários papers e uma série de propostas concretas elencadas no “Caminho para Portugal” não crie tração ou inquietação, “nem que fosse por discordância”. É um dos problemas que aponta a uma atualidade que peca por falta de planeamento e constantemente adia reformas fundamentais, como a da administração pública, que seriam capazes de trazer crescimento e desenvolvimento. Compara estes com outros tempos, os que passou no gabinete do então ministro Miguel Cadilhe – com quem se foi cruzando toda a vida e para quem só tem os mais rasgados elogios –, em que se desenhou o rumo de um Portugal saído de um programa de assistência do FMI (1983-85), em que se pôs a funcionar com independência instituições fundamentais como o Banco de Portugal (BdP), em que se estruturaram os parâmetros da dívida pública e do défice, em que se passou para um sistema de mercado. “Nessa altura, o governo é que decidia por decreto onde se financiava, quanto cada banco subscreveria e a que taxa”, conta, lembrando que com Cadilhe se passou de um défice do Estado e das empresas públicas de 19% a um de 5% (em 1990).
“Eu nunca deixei de ser economista e no gabinete de Cadilhe conseguia fazer trabalho técnico com resultados. Fui muito feliz profissionalmente e tinha uma ótima relação com as pessoas.” Lamenta que, ao contrário das reformas feitas quando era conselheiro do ministro das Finanças e mais tarde secretário de Estado do Tesouro (1989-91), as que empreendeu como ministro da Economia tenham sido revertidas ou travadas. Mas confessa que não gostaria de voltar ao governo – a experiência como ministro da Economia, há de contar-me, não foi tão feliz e rica quanto a desse tempo no gabinete de Cadilhe. E nem tem que ver com os custos financeiros – “quando aceitei o convite de Durão Barroso, fui ganhar 10% do que recebia no Santander” –, antes com os sociais e morais. “Durão nunca me escondeu nada, contava-me todas as vezes que o pressionavam por minha causa e não se deixava influenciar. Sempre o aconselhei e decidi com total liberdade e transparência. Mas muitas vezes não encontrava essa forma de ser naqueles com quem me relacionava e fiquei um pouco desiludido. Os ministros que mais e melhor fazem não são necessariamente os mais reconhecidos”, lamenta.
O elogio de Cadilhe
Escolhemos um delicioso arroz de garoupa com gambas, carregado de coentros que não disfarçam a frescura do peixe e o sabor do malandrinho generoso, que ainda vem no tacho, com dois copos de Duas Quintas a acompanhar. Conta-me que viveu os 11 anos que passou como presidente da CMVM com total independência, sem tentativas de interferência dos ministros – e passou por vários, primeiro Teixeira dos Santos, de quem foi colega de faculdade e que o convidou, depois com Vítor Gaspar e ainda Maria Luís Albuquerque. E se de início hesitou perante o convite do então ministro de Sócrates, por achar que a regulação da bolsa não tinha grandes temas, a realidade deu-lhe um banho de realidade com o BPP, o BPN, o BCP, a OPA à PT, o caso BES. “Quando lá estive, apanhei tudo o que era complicado.”
Ri-se, perdendo-se na recordação, lamentando atitudes tomadas então noutros organismos, por desconhecimento, por cobardia, por deslealdade. Esse é talvez o traço que mais valoriza, a lealdade – fala nele muitas vezes para caracterizar aqueles que mais preza. A começar por Miguel Cadilhe, de quem foi aluno de Estatística na Faculdade de Economia do Porto, com quem se mudou para Lisboa, em cujos gabinetes de governo marcou presença.
Ainda defende que a resolução foi uma má decisão possível para o BES, que devia ter sido recapitalizado, até usando dinheiro da troika. “Podia ter sobrevivido, mas deram aos acionistas 48 horas para fazer um aumento de capital de 2 mil milhões… Era muito, claro! Mas as contas ao que lá se pôs já vão em 17 mil milhões…”
Um melómano tranquilo
Nascido em Estarreja em 1953, Carlos Tavares diz que não herdou a minúcia do pai, mas sim a sua capacidade de trabalho e frontalidade. “Os meus pais eram incapazes de mentir, mesmo que se prejudicassem com isso, e eu também sou assim.” Estudou no colégio da sua terra, cujo ensino ainda louva mesmo que muitos professores nem fossem licenciados – “o de Português, por exemplo, tinha feito o seminário, mas era tão bom que tornou ‘Os Lusíadas’ e o ‘Frei Luís de Sousa’ interessantes, passou-me gosto pela leitura”. Fez os exames em Aveiro e no Porto e seguiu para a faculdade na Invicta, onde vivia num lar universitário e de onde fugia todos os fins de semana para casa. Chamava-o a família, pacata e protetora do seu único filho, mas também a música, que o apaixonara aos primeiros toques na bateria da banda do pai, que ensaiava ali mesmo, na sala de jantar.
Vendo-o partilhar a sua paixão, o pai pô-lo a aprender solfejo com um senhor dali e acordeão com outro vizinho, até estar no ponto para se juntar ao conjunto que atuava pelos bailes e festas das aldeias em volta. “Cantávamos sempre em português, que o meu pai nem admitia outra coisa. Quando foi campeão europeu, cantei muito o ‘Viva o Benfica’”, diz, confessando que até chegou a ter cativo no Estádio da Luz. Do repertório faziam parte “coisas populares” e alguns temas brasileiros, depois apresentou o pai à música de Adamo e ainda o reproduziram, como Bee Gees. A morte do tio, viola baixo do grupo, faria o pai deixar de tocar e Carlos constituir a sua própria banda, Os Lordes, com rapazes da sua idade, operários da região, de quem diz ter recebido lições de vida incríveis.
A ida para a faculdade só o aproximou mais da música – tinha tempo, por isso inscreveu-se no Conservatório, estudou guitarra clássica e composição musical. Mas então a sua via já era a economia, escolhida porque não podia nem pensar em cortar e analisar a anatomia de um pombo, tarefa obrigatória nas outras ciências. E assim se viu formado, a dar aulas de Econometria, de Macroeconomia e com as empresas em estado de sítio num conturbado pós-25 de Abril, a procurar carreira no gabinete de estudos do BPA, onde poderia cumprir o seu sonho de fazer estudos macroeconómicos independentes. Foi o caminho que o levou a Cadilhe, nos anos 1980, e um período “muito bom” da sua vida.
“Ele foi convidado para ministro e chamou-me e uma semana depois estávamos os dois a caminho de Lisboa; vivíamos no Estoril Sol e preparávamos o dia no caminho para o ministério, na Marginal”, recorda. O país estava então sob vigilância do FMI na sequência do resgate de 1983 e conta que nesse tempo se fizeram grandes reformas, puseram-se as contas em ordem, o défice passou dos 19% aos 5%. Havia sensibilidade e vontade dos líderes políticos para as mudanças que era preciso empreender. Aceitaria depois o convite de Durão Barroso para nova experiência de governo – ficando na Economia, não nas Finanças, porque alguns banqueiros não gostaram que retirasse os benefícios fiscais que os bancos tinham na Madeira –, antes de presidir a Comissão do Mercado de Valores Mobiliários (CMVM), entre 2005 e 2016.
A economia como caminho
Com Barroso, seguiria do governo para a Comissão Europeia, para liderar o Bureau of Economics and Policy Advisors, e até gostava da vida que levava em Bruxelas. Mas a Bélgica não é Portugal e a oportunidade de voltar venceu-o. “Durão Barroso portou-se sempre bem, é pena que ainda não o reconheçam pelo seu valor e pelo que fez e construiu”, diz. Não são especialmente próximos, mas tem por ele enorme consideração e repete-o em vários momentos. Conheceu o ex-presidente da Comissão Europeia quando este era secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros e ele seu homólogo no Tesouro e quando Barroso se candidatou às legislativas pediu-lhe ajuda. Horta Osório, então CEO do Santander, onde Carlos Tavares era vice-presidente, aceitou logo que fizesse a assessoria. “Ele fez uma campanha notável, estudou, informou-se, ouvia as pessoas. No debate com Ferro Rodrigues, ele é que parecia o economista”, elogia. E conclui a vantagem de Durão: “É uma pessoa muito inteligente e tem mundo, que é algo que falta a alguns.”
Filiado no PSD mas sem nunca ter sido homem de partidos – filiou-se por achar que podia ser uma mais-valia enquanto quadro, algo que lamenta faltar nessas organizações, onde demasiados estão para se servir em vez de ao serviço –, confessa que hoje se identifica com “bocadinhos de vários partidos”. Lamenta que se faça oposição para ser contra o que é proposto e que não se aplique nisso grande critério. “O governo propõe algo, o PSD diz mal, só porque sim. Preferia ver propostas concretas, lógicas, como a simplificação de escalões do IRS e a desoneração dos escalões mais altos, como uma taxa de IRC mais baixa acabando-se com a multiplicidade de benefícios que existem”, diz, exemplificando com as diferenças entre Portugal e a Irlanda ou Espanha. “Não admira que os jovens fujam… lá fora ganham mais e pagam menos impostos.”
Carlos Tavares também tem uma filha emigrada. Economista, como ele, viveu em Londres e está há anos nos Estados Unidos, onde já tem uma neta com nove anos e um neto de seis. “Ambos falam razoavelmente português… e têm dupla nacionalidade”, orgulha-se. Mas sabe que dificilmente passarão aqui mais do que as férias.
Passado o tempo das viagens que o levaram a conhecer o mundo à boleia dos cargos desempenhados na IOSCO e na ESMA (entidades europeias de regulação dos mercados), boicotadas as partidas de ténis por um caso de tennis elbow (lesão comum entre os praticantes), hoje, Carlos Tavares continua a gostar de estudar economia. E nessa disciplina vê coisas boas, como a evolução na técnica e no conhecimento, e más, como a perda de capacidade de análise, substituída pelo “triturar dos números”, que talvez ajudasse a identificar melhor os sinais de crise. Pedimos salada de frutas com sumo de maracujá e café e avançamos para a vida que leva. A música continua a ocupar-lhe boa parte da existência e a trazer-lhe amigos inesperados, como João Gil, que há uns anos o convidou a atuar no Maria Matos, como um dos seus Cantores Improváveis. Ainda há um mês tocaram juntos, com Vitorino e João Santos também, num jantar da Ordem dos Economistas que homenageou Carlos Tavares. Tranquilo e caseiro, a par da música, divide o seu tempo o trabalho que faz na SEDES e as conferências que organiza para a Fundação AIP e a presidência do conselho de curadores de uma associação de apoio à infância na sua Estarreja natal. O que quer fazer? “Enquanto puder, quero trabalhar, como o meu pai fez até ao fim da vida – ele nunca tirou férias, na vida”, diz-me antes de nos despedirmos. E confessa: “O que mais me assusta é não ter o que fazer. Mas é difícil que aconteça… Quanto mais não seja, estudo.” Cruzou-se várias vezes na vida com Miguel Cadilhe, que foi um professor muito para lá das aulas de Estatística, e fez dos números a sua profissão. Uma década de casos difíceis na CMVM marcaram-lhe o percurso, mas Carlos Tavares traz o coração dividido entre a economia e a guitarra, que o faz cantar. E não se cansa de pensar o país. Mesmo lamentando a falta de atenção à SEDES Joana Petiz jpetiz@medianove.com