O futebol como alternativa à dependência do petróleo
A Arábia Saudita está a tornar-se um eldorado para os profissionais de futebol. Jogadores e treinadores – Nuno Espírito Santo, Jorge Jesus e, talvez, Luís Castro – estão a beneficiar do plano estratégico Visão 2030 cujo objectivo reside na diversificação da economia saudita. Esta é uma resposta ao Catar, que organizou o Mundial 2022 e controla o Paris Saint-Germain; aos Emirados Árabes Unidos, que se posicionaram com a aquisição do Manchester City; e à Europa…
“A Liga saudita está muito melhor e, para o ano, vai ser ainda melhor. Passo a passo, esta liga será top-5 mundial. Precisam de tempo, jogadores e infra-estruturas, mas este país tem um potencial enorme e pessoas fantásticas. A Liga vai ser muito boa.” Quando, a 23 de Maio último, Cristiano Ronaldo fez esta afirmação, houve muitos sorrisos de troça por aquilo que o madeirense prognosticou.
Passados pouco mais de dois meses, percebemos que a Arábia Saudita está pronta a questionar a primazia dada pelos principais futebolistas e treinadores à Europa, e dinheiro não é problema.
Há um plano iniciado em 2016 e que tem como denominação Visão 2030. O objectivo é claro. A Arábia Saudita, como principal país exportador de petróleo, quer encontrar alternativas à volatilidade do preço do barril. E a forma encontrada passa por diversificar a sua economia. O desporto é um dos ramos da árvore, porventura o mais mediático. Através do Public Investment Fund (PIF), a Arábia Saudita adquiriu o Newcastle, passou a controlar 75% dos quatro principais clubes do país, entre eles o Al Nassr de Cristiano Ronaldo, e disponibilizou mil milhões de dólares para contratar os melhores futebolistas do planeta.
Ronaldo foi o primeiro e ajudou, como nunca, à visibilidade de um campeonato que nunca foi tão seguido como no presente. Desde Janeiro que a Liga saudita entrou no mapa futebolístico – graças a Ronaldo, que ajudou a que outros jogadores estivessem disponíveis a seguir as suas pisadas. E o aviso já tinha sido dado em Fevereiro pelo presidente da federação daquele país.
“A contratação de Cristiano Ronaldo foi muito importante para a nossa Liga e foi conseguida com muito trabalho, mas acredito que no próximo Verão vêm jogadores tão ou mais importantes que Ronaldo, futebolistas desse nível ou até de nível mais alto”, alertou Yasser Al-Mishal.
E a verdade é que o actual Bola de Ouro deixou o Real Madrid, após mais de uma década na capital espanhola. Falamos de Benzema, que vai ser jogador de Nuno Espírito Santo no Al Ittihad, actual campeão.
Para se perceber o real alcance das intenções dos sauditas basta dizer que, na flor da idade, Rúben Neves (Al Hilal) e Jota (Al Ittihad), de 26 e 24 anos, respectivamente, trocaram o Reino Unido pela Arábia Saudita.
A China e a ameaça
Muitos têm sido os nomes associados a uma mudança para a Arábia Saudita, cuja janela de transferência abre neste sábado, 1 de Julho, e se estende até 20 de Setembro – uma vantagem em relação à Europa, onde os principais mercados encerram a 31 de Agosto.
Koulibaly e Kanté já trocaram o Chelsea pelo Al Hilal e o Al Ittihad, respectivamente. Édouard Mendy, outro ex-Chelsea, assinou pelo Al Ahli. Edinson Cavani, Hakim Ziyech, Hugo Lloris, William Carvalho, Seko Fofana, Marco Verratti e Marcelo Brozovic são também nomes apontados, mas há jogadores de maior valia a que a Arábia Saudita aponta de forma incisiva. “Esperamos que o Bernardo Silva, do Manchester City, chegue, e também devemos começar a trabalhar na contratação de Mohamed Salah, já que tem uma popularidade arrasadora no mundo árabe e na Europa”, avisou, na última semana, Hafez Al-Medlej, presidente do Comité de Marketing da Confederação Asiática de Futebol (AFC), que respondia às críticas do presidente da UEFA. Aleksander Ceferin considerou que a Arábia Saudita “está a cometer um erro” e que “comprar outros jogadores não melhorará o seu futebol”. E foi mesmo mais longe: “A China cometeu o mesmo erro.”
Hafez Al-Medlej não gostou das palavras do esloveno e ripostou em tom de ameaça: “Estamos só no começo. Todos os futebolistas transferíveis vão, a partir de agora, ser um objectivo dos clubes sauditas. A experiência da China não tem nada a ver com a nossa, era puramente marketing. A saída das grandes estrelas da Europa será um duro golpe para a Liga dos Campeões, que vai perder grande parte do seu brilho. Temos o exemplo da Liga espanhola, que perdeu muito com a ida de Cristiano Ronaldo para a Juventus. E perdeu mais quando Messi foi para o Paris Saint-Germain. A saída de estrelas da Europa vai afectar os contratos de patrocínio e televisivos.”
O falhanço Messi
Mas, falando em duros golpes, a Arábia Saudita sofreu um forte revés ao perder Lionel Messi para o Inter Miami. O argentino foi tentado com uma proposta de 500 milhões de euros/ano, bem acima dos 200 milhões/ano que Ronaldo aufere ou dos 170 milhões/ano aceites por Benzema. Esse era o golpe que o PIF queria dar, reeditando o duelo da última década e meia entre Cristiano Ronaldo e Lionel Messi. O grande objectivo falhou rotundamente porque o antigo jogador do Paris Saint-Germain preferiu a estabilidade familiar e a tranquilidade dos Estados Unidos à vontade emergente dos sauditas de galgarem patamares entre os campeonatos mais admirados.
Nem só de jogadores se faz este novo palco. Nuno Espírito Santo é o actual campeão, e Jorge Jesus o seleccionador da Arábia Saudita. Contudo, há outro português na berlinda para rumar ao mundo árabe. Referimo-nos a Luís Castro, treinador do sensacional Botafogo, que lidera, com surpresa, o Brasileirão. O português surge como alternativa a Abel Ferreira, que terá recusado os petrodólares. Luís Castro está a ser tentado para assumir o comando do Al Nassr, de Ronaldo, e o capitão da selecção terá mesmo contactado o técnico no sentido de o convencer. A diferença está no dinheiro, claro está. Luís Castro recebe, anualmente, 2 milhões de euros no Rio de Janeiro, ao passo que o Al Nassr acena com mais de 6,5 milhões de euros anuais… e ainda uma mansão.
Aconteça o que acontecer até 20 de Setembro, dia de encerramento da janela de transferências na Arábia Saudita, nada será como antes. A Arábia entrou mais tarde neste “jogo”, mas está a mostrar-se implacável para fazer face ao Catar, que organizou o Mundial 2022 e detém o controlo do Paris Saint-Germain; aos Emirados Árabes Unidos, donos do grupo City, em que a jóia da coroa é o campeão europeu, Manchester City; e ainda à Europa, que não esperava este ataque saudita.
Com Mohammed bin Salman, o príncipe herdeiro e que está seriamente apostado em dar um novo rosto ao país, por trás desta estratégia, a mesma não se esgota no futebol. A Arábia Saudita tem um GP Fórmula 1 desde 2021, quer ser a anfitriã de 25 Mundiais de várias modalidades até 2030, será palco da Taça da Ásia das Nações em 2027, quer patrocinar a futura Superliga africana e tem como ambição receber um Mundial de futebol e organizar uns Jogos Olímpicos. E, já este ano, recebe o Mundial de clubes. Isto sem falar que no golfe criou de raiz o circuito LIV e que obrigou a PGA e o Circuito Europeu a fundirem-se com a nova entidade, tal era a discrepância de prize moneys.
O projecto está em marcha; resta saber se tem pernas para andar.
Artigo originalmente publicado na edição do NOVO de 1 de Julho