Durante a pandemia, ouvimos demasiadas vezes o argumento de que não podíamos ter produção regional de vacinas. A ideia de um centro ibérico de referência era descabida, o capital financeiro e humano necessário estaria fora do nosso alcance e, por fim, mesmo que fosse possível criar e desenvolver um centro de desenvolvimento e produção de vacinas, nunca as teríamos em tempo útil.
Vale a pena revisitar o que foi efetuado na América do Sul. É útil perceber que muitas destas ideias preconcebidas, na realidade, não ajudam a tomar as melhores decisões, apenas aumentam a falta de tecido produtivo, contribuindo para a emigração dos jovens e para a nossa dependência do exterior em setores estratégicos.
A Argentina iniciou o seu programa com 100 mil dólares, em maio 2020. Em outubro do mesmo ano, já tinha uma formulação com bons resultados em modelos animais, mas foram naturalmente desconsiderados pela indústria. Após um reforço de investimento de 15 milhões dólares, a vacina encontra-se na fase final de completar a terceira fase de testes, havendo a expectativa de que sejam produzidas, ainda este ano, cerca de 500 mil doses.
Há mais exemplos semelhantes no continente. Desde Cuba, que administrou 43 milhões de doses de uma vacina produzida localmente com 92% de eficácia contra casos graves, ao Brasil, onde, através de uma parceria entre laboratórios públicos e privados, foi possível desenvolver uma vacina que será vendida a preço de fabrico ao Ministério da Saúde. Através de um modelo semelhante ao brasileiro, o México anunciou que, no final deste ano, terá igualmente a sua própria vacina.
Em relação ao investimento necessário, é notória a diferença de valores entre estes projetos locais e os projetos da grande indústria. O investimento público dos Estados Unidos situou-se nos 32 mil milhões de dólares. No caso da União Europeia, esta rubrica alcançou os 21 mil milhões de euros. Por uma quantia muito menor, foi possível produzir cada um destes quatro exemplos de vacinas locais.
Seria uma solução possível, economicamente viável, que contribuiria para a segurança, bem-estar e independência dos 58 milhões de habitantes da Península Ibérica. Falta acrescentar os ganhos a nível da diplomacia da saúde. Com solidariedade em vez de nacionalismo de vacinas, teríamos um poderoso instrumento para aumentar a nossa influência no mundo, contribuindo de forma decisiva para a saúde dos povos. A equidade no acesso às vacinas foi uma das falhas, infelizmente esperadas e tantas vezes repetidas, da resposta mundial à pandemia. Uma opção local ajudaria a contrabalançar este efeito.
O último argumento, de que a vacina não chegaria a tempo se a via escolhida fosse esta, é mais interessante. De facto, nada o garante. Dos exemplos que enunciei, apenas a cubana foi desenvolvida e entregue a tempo de ser útil na pandemia. Mas também é preciso não esquecer que, se é verdade que o estado pandémico terminou, não cessou a necessidade de vacinar e continuar a proteger as pessoas, à semelhança do que é feito com a vacinação da gripe. As mutações do vírus, associadas ao seu perfil natural de imunidade temporária, obrigam-nos a criar programas de vacinação anual para grupos de risco, aberta aos demais interessados. Nesta rubrica, foi autorizada despesa no valor de 70 milhões de euros em novembro do ano passado, para garantir a compra de vacinas contra a Covid para este inverno. A fatura das vacinas contra a gripe atinge os 20 milhões de euros, a que acrescem 300 mil euros que correspondem a custos de reserva. Mantemos a necessidade de comprar ou produzir vacinas localmente.
Por outro lado, para ser sério, este debate não deveria ser apenas uma escolha entre aderir ao mecanismo europeu ou procurar solução local. Pelo contrário, ambas são compatíveis. Uma garantia a resposta de curto prazo, a segunda garantia a resposta de médio e longo prazo sustentável, que ajudaria a fixar tecnologia, recursos humanos e dinamizaria a economia local.
Não podemos produzir vacinas? Afinal parece que podemos. Com vontade de investir na saúde e na segurança, nada nos impede de ter soluções, públicas ou em parceria, sustentáveis e duradouras.