Manuel Soares: “Não temos um governo reformista na justiça”
Manuel Soares considera que a ministra da Justiça e o Governo não são reformistas, desperdiçando a maioria absoluta e os meios financeiros disponíveis. Critica que no âmbito da reforma constitucional não haja qualquer proposta para discussão, com excepção da apresentada pela Iniciativa Liberal.
Olhando para Portugal, duas questões: quando falou na mudança a que temos assistido e disse que a justiça tem de acompanhar essa mudança e preparar-se, porque as coisas já não são como eram dantes, o nosso sector da justiça tem tido a capacidade de se adaptar? Corremos o risco de estar a caminhar para um quadro em que os extremismos podem prevalecer? Quando ouvimos todos os dias falar em atrasos, em falta de administração da justiça a em a sociedade não se sentir tão representada na ideia que tem do que é o exercício da justiça…
Deixe-me fazer uma nota introdutória para dizer que não é verdade que a justiça, como um todo, tenha esse problema grave de ineficiência. Se olharmos para aquilo que são os relatórios internacionais que comparam, por exemplo, os 47 países do Conselho da Europa –agora 46, que a Rússia saiu – nós vemos que a justiça portuguesa, nos últimos 20 anos, tem evoluído de uma forma muito considerável. Olhe-se, por exemplo, para as pendências processuais, há 25 anos tinha 1,6 milhões de processos, agora tem 600 mil, uma redução superior a metade. Dito isto, a justiça é, por definição, conservadora, não no sentido político, mas no sentido da dinâmica da mudança. Não se pode pedir à justiça que vá na primeira linha das mudanças sociais e que ande a fazer experimentalismo social; essa não é a função da justiça. A justiça vai atrás das mudanças do mundo, normalmente quando elas se sedimentam, e, portanto, é normal que quando surgem mudanças de natureza social e ideológica, na forma como as sociedades se relacionam e os indivíduos se relacionam dentro das sociedades, é normal que, nesses momentos de transição, a justiça às vezes não acompanhe logo; surgem questões novas e os quadros mentais de funcionamento ainda estão, digamos a ver o quadro anterior e, depois, adaptam-se e acompanham; isso é inevitável, não é só em Portugal e no mundo inteiro.
Dito isto, as estruturas da justiça têm de estar preparadas para acompanhar a evolução dos tempos, com certeza que sim. E, portanto, uma justiça que não se adapte, que não olhe para a nova realidade… dou um exemplo: uma justiça clássica nunca poderá tratar adequadamente um conflito que se estabeleça numa compra online em que compramos uma coisa num site dos Estados Unidos, que é feita na China, que vem para a Europa por uma empresa não sei do quê e, depois, é entregue na nossa casa por meio de uma UPS qualquer espanhola. Se aquilo que eu comprei tiver um defeito qualquer, os quadros de funcionamento clássico da justiça de ir a um tribunal, pôr uma acção, não têm a ver; vou pôr uma acção contra os Estados Unidos, contra Espanha, contra a China, num tribunal em Portugal? Não, a justiça tem de se adaptar para encontrar uma forma imediata, rápida, de resolver este tipo de conflitos. Aqui está um exemplo de como a evolução das sociedades e as evoluções das tecnologias obrigam, necessariamente, a repensar os modelos clássicos de funcionamento da justiça, e, por isso, é que não podemos perder tempo, temos de olhar para a sociedade, temos de olhar para a justiça e ver onde é que ela deve e onde é que tem obrigação de se adaptar, precisamente para não ficar desfasada daquilo que são as exigências e que não se torne ela um elemento frágil ou, digamos, a má moeda do sistema.
A justiça tem uma nova ministra há um ano, e um novo governo, que balanço é que faz deste período e das políticas que foram desenvolvidas ou que não foram?
Acho que nós não temos um governo reformista na justiça. No início, dissemos que esperávamos do Ministério da Justiça deste governo, com uma maioria absoluta, com meios financeiros que outros governos não tiveram, que olhasse para isto de que estamos a falar de outra forma. Nunca vi sinais na ministra da Justiça que aparecesse no sistema como uma grande reformadora; aliás, vejo sinais, até, e nos discursos, às vezes, contrário. Portanto, o pano de fundo é este – sem saber agora se está mal ou bem e já podemos dizer o que é que se fez bem ou mal –, não temos e eu acho que devíamos ter um Ministério da Justiça, um governo reformista, que olhasse para a justiça nessa perspectiva de vamos ver como é que podemos adaptá-la para as próximas décadas. Agora, acho que houve um arranque lento; não sei se há um problema de comunicação, porque, às vezes, as coisas podem estar a ser feitas e nós não sabermos.
Há áreas que precisam de solução imediata; a questão da greve dos funcionários judiciais. Os funcionários têm razão, não vale a pena dizermos que não têm; ganham mal, têm condições de trabalho difíceis, estão desmotivados, e, portanto, é preciso olhar para esta realidade. Nós não podemos ter os tribunais a funcionar com um conjunto de pessoas que são essenciais para o funcionamento do sistema de braços caídos e de cabeça baixa, isto não pode acontecer. Temos, neste momento, os tribunais em todo o país paralisados com uma greve, adiamentos aos milhares e, aqui está, é preciso fazer alguma coisa, não é amanhã, era já ontem.
Outra área onde eu acho que era importante é a tal matéria de que falámos de regulamentar aquela lei das distribuições. Nós não podemos deixar que se instale o caos nos tribunais com estes incidentes anómalos que visam apenas interromper o andamento do processo. Aqui está uma área, esta mais particular, mas que precisa de uma intervenção urgente.
Também, por exemplo, nas arbitragens. A senhora ministra, na abertura do ano judicial, disse que ia mexer nisso, e muito bem, porque as arbitragens são uma coisa absolutamente vergonhosa, tal como estão; o Estado ser condenado a pagar 100 ou 200 milhões a uma empresa privada, num tribunal secreto, com juízes escolhidos à socapa, que ninguém controla, que fazem uma sentença que ninguém pode ler, que não querem saber das decisões do Tribunal de Contas sobre se o contracto é nulo ou deixa de ser nulo, não há recurso, o Ministério Público não está lá e o Estado, depois, tem que desembolsar 100 ou 200 milhões de euros, não pode ser. E isto, o sistema que temos agora permite, e, portanto, nesta área também estamos à espera de uma actuação mais enérgica rapidamente.
Tem esperança num resultado positivo da possível revisão constitucional para esta área, que PS e PSD se entendam para criarem uma base mínima para para haver uma reforma?
A Esperança que tenho é zero por uma razão simples, porque os projectos de revisão constitucional, tirando o da Iniciativa Liberal, são omissos em relação à justiça. E, portanto, os principais partidos não tendo nada projectado em relação à justiça, é muito pouco provável que a revisão constitucional toque em algum desses aspectos, o que nos causa alguma perplexidade, porque se calhar, se fosse perguntar às pessoas desses partidos se à crise na justiça, todos diziam que sim. Voltamos sempre ao mesmo, então, se há crise, porque é que não a resolvem? Parece a barragem do Alqueva: ai é preciso a barragem, então façam-na; aqui é igual: há crise? Então, resolvam-na.