O dicionário da Porto Editora define com precisão o brasileirismo “cara de pau”. Aplica-se a “pessoa que é cínica e descarada e que age com naturalidade excessiva”. Alguém como Fernando Medina, portanto. Na mais recente reunião pública camarária, o presidente da Câmara Municipal de Lisboa e putativo candidato ao mesmo cargo sublinhou com descontração “a extraordinária experiência, capacidade e qualidade que Manuel Salgado demonstrou ao longo dos anos” e reiterou que vai manter o arquiteto – agora envolvido em uma série de processos incluídos numa operação lançada pela Polícia Judiciária – como seu consultor. “Manterei aliás como sempre a minha intenção de o consultar, caso ache relevante para a cidade e para auxiliar a minha decisão sobre vários assuntos”.
As declarações de Medina surgiram em resposta à questão oportunamente levantada pela vereadora do CDS-PP, Assunção Cristas, que integra um gabinete com o qual colaboro, para que fique aqui bem clara a minha declaração de interesses. Mas, pese embora o meu trabalho para a oposição, não deixa de ser relevante e inusitada, penso que para qualquer um exceto os envolvidos, esta relação umbilical entre Medina e Salgado, numa altura em que o segundo surge a olhos vistos como cada vez mais tóxico para as ambições do ainda presidente.
Atentemos a uma curta cronologia: O vereador arquiteto Manuel Salgado, que saíra já em 2019 da vereação com o pelouro do Urbanismo por concentrar a maior parte das críticas e das polémicas envolvendo a cidade, foi dirigir a Sociedade de Reabilitação Urbana de Lisboa. Aí tudo configurava, após a extinção da divisão de obras da CML, que poderia concentrar os seus poderes e continuar o trabalho de “novo Marquês de Pombal” – como lhe chamam – sem o escrutínio irritante das reuniões camarárias que têm essa maçada de contarem com a presença de inquisitivos vereadores da oposição e jornalistas com a mania de fazerem perguntas.
No entanto, o inusitado aconteceu; Em Fevereiro passado rebentou o caso relacionado com uma operação judiciária envolvendo o novo Hospital em Alcântara e Manuel Salgado demitiu-se também da presidência da SRU. Fernando Medina, na altura, aceitou a demissão do arquiteto. Mas, veio a saber-se mais tarde, convidou-o a permanecer como seu consultor pro bono.
Irónico azar dos Távoras para o “novo Marquês de Pombal”, eis que surge então a designada ‘Operação Olissipus’: “Estarão em causa suspeitas da prática de crimes cometidos no exercício de funções públicas, relacionados com a área do urbanismo da Câmara Municipal de Lisboa, nomeadamente, abuso de poder, participação económica em negócio, corrupção, prevaricação, violação de regras urbanísticas e tráfico de influências”, explicou a Judiciária em comunicado.
Foi pois, neste contexto, que surgiu a oportuna pergunta lançada por Assunção Cristas. E a resposta de Medina: “Manterei aliás como sempre a minha intenção de o consultar, caso ache relevante para a cidade e para auxiliar a minha decisão sobre vários assuntos”.
As razões desta teimosia apesar dos seus custos políticos em ano eleitoral não são percetíveis. O mantra de “À Justiça o que é da Justiça e à Política o que é da Política” é um chavão que os responsáveis socialistas se têm visto obrigados a repetir no passado recente. Mas Fernando Medina, para além de à beira de ser de novo candidato à CML, é também visto ainda como sucessor de António Costa no seu partido. Que conselhos de Salgado são tão importantes que justifiquem o risco para a sua candidatura e futuro, ignoro. Mas em breve, quero crer, a nudez crua da verdade surgirá do manto diáfano desta teimosia.
*Consultor de comunicação