Investigação ignorou evidências e Leonor acabou assassinada à facada num curral
Marido e mulher apresentaram denúncias e foram acompanhados por médicos durante anos, mas nenhum alerta foi lançado. Equipa que analisa homicídios em quadro de violência doméstica considera que autoridades não foram “proactivas”.
Leonor, chamemos-lhe assim, tinha 66 anos quando o marido, com quem mantinha uma relação há 46 anos, a esfaqueou até à morte na casa onde viviam. Há já vários anos que a relação era conturbada, com episódios de violência mais agudos nos últimos anos que passaram juntos– durante 13 anos, o homem desconfiou que Leonor o traía. As “ideias delirantes de ciúme”, de que o andaria a “enganar com outros homens”, aumentaram de intensidade em 2016 – dois anos antes do homicídio, quando o marido começou a justificar as suspeitas com a “disposição de pedras e paus nos caminhos” e “luzes acesas nos edifícios”. Eram, segundo ele, sinais que a mulher enviava aos “amantes”.
Meses depois das primeiras desconfianças, começou a ser acompanhado “de forma irregular” em consultas de psiquiatria. Com um diagnóstico de perturbação delirante de ciúme e síndrome depressivo, foi medicado com antipsicóticos e antidepressivos oito meses antes do homicídio. Mas abandonou o tratamento pouco tempo depois – dizia “que não precisava… quem precisava era [ela]”.
Durante estes anos, tanto Leonor como o marido apresentaram denúncias, quatro das quais chegaram a dar origem a inquéritos. A Equipa de Análise Retrospectiva de Homicídio em Violência Doméstica (EARHVD), cujo relatório foi divulgado esta quarta-feira, considera que as autoridades actuaram “sem proactividade” e que era “impossível deixar de ter a clara percepção de que algo de muito preocupante” acontecia.
A mulher, que queria o fim da relação, refugiou-se, por diversas vezes, em casa dos filhos – tinham oito em comum. Chegou a sair do país para viver com uma das filhas: por terem estado emigrados quase 35 anos, tendo regressado a Portugal apenas depois da reforma, vários dos filhos do casal viviam no estrangeiro.
Foi cerca de um mês depois de Leonor ter regressado do estrangeiro e voltado a viver com o marido que este deixou de tomar a medicação. Muito alterado, começou a “torturar psicologicamente e de forma reiterada” a mulher – as discussões aconteciam sobretudo à noite.
Mesmo com as saídas constantes de casa de Leonor, os conflitos não cessaram. As discussões eram recorrentes e a única filha do casal que residia na mesma localidade dos pais chegou a intervir por diversas ocasiões. O objectivo era tentar acalmar o pai e fazê-lo aceitar a separação que a mãe tanto queria.
Em Janeiro de 2018, a mulher voltou a sair de casa para passar a noite com uma das filhas. Regressou três dias depois, para tratar dos animais que eram criados por ambos, e enfrentou mais uma discussão. Foi a última, porque Leonor acabou esfaqueada pelo marido. Com uma faca com cerca de 20 centímetros de lâmina, o homem desferiu vários golpes e atingiu a mulher no tórax, no pescoço e na cabeça.
Depois de matar Leonor, ingeriu vários dos antidepressivos que lhe tinham sido receitados e telefonou à filha: “Matei a tua mãe, estou a morrer, estou no curral”. Antes de desligar, pediu-lhe que ligasse a outra das filhas do casal.
O tribunal considerou que o homem, de 69 anos, “praticou actos que consubstanciam facto ilícito de homicídio simples”, mas declarou-o “inimputável relativamente a tais factos”. A justificação? Sofria de “anomalias psíquicas” que justificavam alterações de comportamento. Segundo o processo judicial, as ideias delirantes, “centradas na temática de ciúme”, à data da prática dos factos determinavam alterações ao seu comportamento – determinando ainda a sua incapacidade de avaliar a ilicitude do seu comportamento.
Por perigo de vir a cometer factos semelhantes, foi sujeito a “medida de segurança de internamento em estabelecimento de tratamento, pelo período de três anos, após o que perdurará enquanto persistir o estado de perigosidade criminal ou até à data em que se completarem dezasseis anos desde o seu início”.
As falhas na investigação
O relatório da EARHVD não poupa críticas às forças policiais e ao Ministério Público, considerando que a investigação “não se pode restringir ao depoimento da vítima, nem ficar na total dependência da iniciativa desta para levar a cabo a recolha de elementos probatórios”.
Em Dezembro de 2016, por exemplo, quando apresentou queixa na GNR, Leonor disse que o marido a tinha tentado “matar com uma arma de fogo”. Segundo o citado no relatório, o agressor, depois de ter apontado na direcção da mulher, “efectuou dois disparos” para o lado, tendo depois contado as munições que restavam. Rematou dizendo que “ainda tinha quatro mas que uma ficava para ele”.
Em resposta a esta queixa, o marido de Leonor também apresentou uma denúncia na GNR, relatando que esta pegara “numa faca de cozinha e encostou-a à sua garanta, tendo também desferido um murro na boca”.
A recusa dos envolvidos em testemunhar levou ao arquivamento dos processos, mas para a comissão o MP devia, ao proferir o referido despacho, “accionar a intervenção dos serviços e entidades que pudessem proporcionar o suporte e o acompanhamento que tivesse em vista procurar evitar o prolongamento e a agudização do conflito”.
No relatório, apontam-se ainda problemas na avaliação de risco feita pela GNR: “foi sempre utilizado o critério da quantidade de factores assinalados com SIM para fixação do nível de risco, não se efectuando qualquer ponderação nem sobre a consistência das respostas recebidas nem sobre a importância preditora do perigo dos factores identificados”.
As falhas apontadas não acabam aqui. Segundo o mesmo documento, um NÃO inscrito na avaliação de risco do primeiro inquérito contraria o próprio auto de denúncia, onde aparecia inscrito que “o denunciado já ameaçou várias vezes a denunciante a dizer que a matava”.
A acção do Serviço Nacional de Saúde também é questionada, pois a informação recolhida demonstra que Leonor “foi assistida por diversos episódios de lesões traumáticas, atribuídas a ‘quedas’, entre 2010 e 2017, e que ao marido foram prescritos ansiolíticos a partir do ano de 2010, e que ambos recorreram frequentemente, a partir do ano de 2015, ao médico de família comum que os assistia no SNS, para manifestarem problemas de ansiedade, perturbação depressiva e outros transtornos psicológicos”. Além disso, “a conduta do homicida esteve associada a alterações do comportamento decorrente de perturbação delirante e perturbação depressiva’”.
A análise dos factos permite constatar que “há uma coincidência temporal entre a recorrência destas queixas nos últimos anos e as denunciadas agressões e ameaças que determinaram a instauração de procedimentos criminais”. Mesmo perante este cenário, revela a EARHVD, “não há informação de que tenha sido indagada possível existência de um ambiente de conflitualidade naquela relação conjugal, não obstante os profissionais de saúde se encontrarem numa posição privilegiada para o poder identificar precocemente, despoletando os meios de intervenção necessários e proporcionais”.