Inteligência Artificial? “A mudança a que estaremos sujeitos será uma constante cada vez mais rápida”

A Ordem dos Psicólogos Portugueses quer que a inteligência artificial seja regulada, para que se possam limitar os seus riscos e aproveitar as capacidades que oferece, e defende que Portugal deve avançar o quanto antes para começar a fazê-lo. Mais do que isso, quer um compromisso de que tanto o Estado como as empresas vão ter em conta o fator humano na transição digital

A Ordem dos Psicólogos Portugueses (OPP) entrou no debate sobre o desenvolvimento da Inteligência Artificial (IA), com a produção e divulgação de um documento com propostas de estratégias e recomendações para lidar com o desenvolvimento de tecnologia que tem “um potencial transformador em todos os sectores da sociedade”, defendendo uma regulação efetiva, para “ultrapassar os seus desafios, alavancar as suas vantagens e mitigar os seus riscos”.

Em entrevista ao NOVO, Miguel Oliveira, membro da direção da OPP e coordenador da Equipa de Cibersegurança e da Aplicação para Treino da Decisão Ética em Realidade Virtual da ordem, diz que são necessárias regras, mas também literacia num período de transição digital, para se encontrarem “soluções que sejam éticas, equitativas, justas e que sirvam para aumentar os seres humanos, e não substituí-los”.

O que levou a Ordem dos Psicólogos Portugueses a avançar com um documento para participar de forma ativa na discussão relativamente ao desenvolvimento e ao impacto da inteligência artificial na sociedade e no bem-estar das pessoas?
Desde 2017 que temos vindo a olhar para o contexto da tecnologia, onde a inteligência artificial é a sua expressão máxima, como um contexto que colonizará todas as áreas de intervenção humana, com consequências profundas nos seres humanos – apesar de não serem, à data, ainda todas antecipáveis – que se repercutirão, em última análise, nos seus comportamentos e bem-estar. Nesse sentido, a Ordem dos Psicólogos Portugueses tem vindo a integrar a inteligência artificial nas suas prioridades, através de artigos de opinião, documentos para fomentar a literacia, promoção de conferências e desenho, criação e implementação de soluções relacionadas com o contexto das tecnologias digitais, como é o caso da aplicação em realidade virtual para o treino de tomada de decisão ética (VR ETHICS). Esta é a forma de a ordem afirmar os psicólogos como geradores de valor no contexto da transição digital.

É fundamental que o processo de regulamentação seja bem definido e, como a OPP sugere, através da cooperação multidisciplinar, para que a inteligência artificial não tenha um impacto penalizador ou nocivo na vida das pessoas?
Sim. Primeiro é essencial que haja uma discussão multidisciplinar e, em seguida, regulamentação nesta área. É algo que, à data, e face a estarmos ainda no início desta nova revolução tecnológica, não conseguimos antecipar todas as implicações que terá, mas visto que os impactos da inteligência artificial são multicontextuais é necessário que a abordagem tenha o maior número de atores para que as regulações a serem produzidas possam ser o mais inclusivas, éticas e justas possível.

Um dos desafios da inteligência artificial que a OPP salienta é o risco de enviesamentos. Como a IA recorre a algoritmos construídos por humanos, os seres humanos podem transmitir as suas preferências e preconceitos. Como pode ser ultrapassado este risco?
Se queremos ter maior impacto no que toca aos riscos de enviesamentos, temos de ter em consideração que o maior preditor de algoritmos enviesados são dados que não representam a pluralidade do que é ser humano. Nesse sentido, o nosso comportamento tem um papel fundamental, pois, como sabemos, os algoritmos bebem do que aprendem na internet e esta está cheia de comentários e dados que são depreciativos, discursos de ódio, falta de comportamentos cívicos, que servem depois de base para os algoritmos fazerem as suas previsões enviesadas. Se tivermos um comportamento mais cívico online, onde o respeito pela pluralidade de opiniões e a empatia possam ser a norma, estaremos todos a contribuir para que os algoritmos e modelos da próxima geração de IA sejam mais justos e inclusivos e possam assim representar o melhor que a nossa espécie tem.

O controlo humano sobre os sistemas de inteligência artificial parece ser também uma das principais ameaças associadas, nomeadamente tendo em conta os fins para os quais os sistemas podem ser utilizados. A regulamentação será suficiente para garantir uma utilização responsável e segura da IA?
Na minha opinião, a regulamentação é importante, mas um investimento nas pessoas para terem a informação para o uso destas ferramentas de forma segura, ética e positiva é igualmente essencial. Neste momento, principalmente na Europa, existe a preocupação de que os sistemas de inteligência artificial sejam uma ferramenta para ser usada por humanos e centrada em humanos. Se, by design, estes sistemas tiverem a psicologia como ingrediente central, estaremos a contribuir para que a centralidade do ser humano seja uma realidade.

A inteligência artificial pode ter influência na redução de postos de trabalho e na redução dos salários, inclusivamente. Ao mesmo tempo, também se estima que ao longo do tempo pode criar muitos postos de trabalho. É necessário estabelecer um equilíbrio para que a IA não tenha influência na manutenção do trabalho, mas também para que não tenha consequências na saúde psicológica dos trabalhadores?
São duas preocupações muito importantes. Como disse anteriormente, antecipar todas as consequências, quer positivas quer negativas, é muito difícil. O que podemos antecipar com um grau elevado de certezaé que a mudança a que estaremos sujeitos será uma constante, com previsão de ser cada vez mais rápida. Sabendo isto, também aqui a psicologia se encontra numa posição privilegiada para poder ser relevante ao usar aquilo que é o seu conhecimento acumulado para intervir nas questões relacionadas com os processos de adaptação, gestão de expetativas, gestão das frustrações e contributos com mecanismos de coping para fazer face a toda essa mudança, impactando de forma positiva as consequências psicológicas nos trabalhadores.

Quais são os contributos que a ciência psicológica pode ter nos sistemas e modelos de inteligência artificial?
Alguns dos contributos, já referi, como os processos de adaptação, gestão de expectativas, gestão das frustrações e contributos com mecanismos de coping, mas adicionaria ainda os contributos para o aumento da literacia, para soluções que sejam éticas, equitativas, justas e que sirvam para aumentar os seres humanos, e não substituí-los.

Entrevista originalmente publicada na edição do NOVO de 9 de setembro