Fernanda de Almeida Pinheiro: “Alteração dos actos próprios dos advogados é uma linha vermelha”
A bastonária do Ordem dos Advogados garante que eventuais alterações aos actos próprios dos advogados são inaceitáveis para a classe e admite contestar a acção do Governo em tribunal
Queixou-se por não ter tido qualquer orientação do Governo para o contributo para a revisão dos estatutos da Ordem dos Advogados, que este não disse o que pretendia…
E continuamos sem saber.
…nesse quadro, com um prazo muito curto, que contributo deu?
A Ordem deu o seu contributo porque entendeu que o tinha de dar, que era seu dever. Poderia, naturalmente, ter optado por não o fazer, porque entendemos que falar sobre estas matérias, que têm de ser reflectidas profundamente até no seio da classe – uma proposta de revisão do estatuto deveria, naturalmente, ser conduzida pela OA, e não o contrário –, implica que eu tenha que fazer uma consulta à minha classe, implica que eu tenha que marcar uma assembleia geral para podermos ter uma proposta digna desse nome.
O que está aqui em cima da mesa, parece-nos, é fazermos apenas a adaptação daquilo que é a Lei das Associações Públicas Profissionais [LAPP] ao novo ao estatuto da Ordem. É uma pena, porque o último estatuto que foi aprovado da OA data de 2015 e nós estamos em 2023. Foram já detectadas inúmeras situações que deveriam ser corrigidas no regime e que obrigariam a essa reflexão profunda, do ponto de vista até do procedimento disciplinar, para que ele possa ser mais ágil e fazer cumprir ainda melhor o poder sancionatório da OA, no sentido de penalizar o que está mal e aliviar quem não tem culpa, o que é um processo complicado, moroso, ainda muito baseado no papel, o que já não faz sentido na altura em que vivemos. Essa é uma das situações e isso não vai ser possível com estes timings.
O que nos foi dito, a 31 de Março, foi que iríamos fazer um conjunto de reuniões e tínhamos que apresentar os nossos contributos sobre aquilo que entenderíamos que deveria ser a melhor forma de adaptar a LAPP ao estatuto; entremeios veio a Páscoa e, na realidade, tivemos 10 dias úteis, sem sequer saber qual era a ideia do Governo, para nos pronunciarmos, sozinhos, com as nossas ideias, e sem ninguém nos dizer se as mesmas mereciam ou não acolhimento. Aliás, vem daí, inclusivamente, e felizmente já foi clarificado – mas não foi na altura em que foi questionado –, a questão da [obrigatoriedade da] licenciatura. Começa, precisamente, por nos dizerem que vão mexer na Lei dos Actos Próprios e nós perguntámos em que sentido, porque, para nós, não haveria nada que mexer; aquilo que nos disseram foi vamos abrir a outras profissões jurídicas a possibilidade das pessoas se inscreverem na Ordem dos Advogados, e eu perguntei quais profissões jurídicas, e a resposta que nos deram foi esta: por exemplo, administradores de insolvência, e eu fiquei atónita. Os administradores de insolvência, na sua maioria, são de Gestão, são de Economia, não têm sequer licenciatura em Direito. Os senhores estão a pensar mudar também isso em termos de acesso à profissão? Isso deixou-nos muito preocupados e dissemos imediatamente que não iríamos aceitar tal coisa. E a resposta foi que está a ser estudado; portanto, quando nos dizem que está a ser estudado, é porque equacionam essa possibilidade.
Ainda bem que foi apenas uma falsa questão e que tal coisa nunca esteve em cima da mesa; ficamos muito tranquilos por saber e ficaremos ainda mais tranquilos quando soubermos que não foram acatadas aquelas recomendações do relatório da Autoridade da Concorrência, porque, pura e simplesmente, fazem tanto sentido quanto retirar a obrigatoriedade de haver uma licenciatura em Direito para o acesso à profissão, não fazem sentido nenhum.
Mas o parecer existe e a alteração dos actos próprios tinha sido referida como uma linha vermelha.
E é uma linha vermelha.
Se vier a concretizar-se desta forma ou maioritariamente desta forma, ainda há margem de negociação? Como pretende combater isso?
Isso é o que nós vamos perguntar à classe. Já foi convocada uma assembleia geral, vamos ter de conhecer também a proposta do Governo, para saber que medidas é que vamos tomar e com quem. Para já, contactámos as nossas congéneres europeias, as outras instituições que congregam advogados, e estamos a ter uma grande receptividade nessa matéria, porque é importante e fundamental que ela exista, porque sentem também, como nós, que isto é um ataque às prorrogativas e aos direitos da profissão, que não são das pessoas, dos advogados, mas são da profissão; é preciso fazer muito bem esta linha, porque isto não tem a ver com direitos que não são meus, são da profissão que eu exerço e fazem sentido existir precisamente por isso.
Vamos ouvir os nossos colegas e vamos definir a nossa estratégia de ataque, se prosseguir esta intenção de se estar a mexer naquilo que nós entendemos vai prejudicar profundamente o Estado de Direito democrático e os cidadãos. É isso que vamos analisar, vamos ver o documento, vamos discutir entre nós, estamos abertos a todas as soluções possíveis e vamos definir uma estratégia de luta.
A advocacia sempre lutou, mesmo nos tempos do Estado Novo, numa altura em que não éramos uma democracia, sempre fizemos erguer a nossa voz, numa altura muito perigosa para os advogados, que sofreram, muitos deles, como Francisco Salgado Zenha, Mário Soares, entre muitos outros, o jugo de um poder totalitário, e não podemos deixar que esses tempos voltem, temos de continuar a lutar para manter os direitos, liberdades e garantias que tão arduamente conseguimos com uma revolução, daqui a pouco, há 50 anos.
Este tema vai ser decidido no Parlamento, vai falar com os grupos parlamentares?
Naturalmente.
E admite avançar para tribunal, já que o Governo é suportado por uma maioria absoluta parlamentar?
Se tiver de ser.
Esse é, realmente, o nosso temor, porque nós sabemos perfeitamente como é que funcionam as maiorias parlamentares.
Eu gostava muito que o Parlamento servisse contraponto ao Governo, é isso que se espera mesmo de uma maioria parlamentar, mas não é a isso que assistimos todos os dias. Aliás, posso dar-lhe um exemplo: no dia em que estive presente na Assembleia da República, no dia 28 de Abril, foram chumbados uma série de projectos de lei – que eu ainda tenho de perceber porquê – que precisamente consignavam garantir às vítimas de violência doméstica a nomeação automática de um patrono para lhes prestar um aconselhamento digno desse nome. Ora, se nós estamos a falar de um direito constitucional, que está plasmado no artigo 20º, que é um dever do Estado assegurar em todo o território do país consulta jurídica, especialmente para as vítimas de crimes graves, como é o caso de violência doméstica, que é responsável pela morte de dezenas de mulheres todos os anos neste país, como é que se justifica que uma maioria parlamentar chumbe um a um os projectos que lhe foram apresentados? Eu fiquei siderada, porque não acho isto normal. Nós estamos a falar de um país que poderia ter um problema mínimo de violência doméstica, mas não é o caso; todos os anos nós somos confrontados com números reais; aquelas pessoas não são um papel, não são processo, aquelas pessoas são pessoas, são mães, são pais, são filhos que estão ali envolvidos, são familiares directos, e então é esta a resposta que nós damos às vítimas? Dizemos todos os dias que temos muito cuidado e que estamos muito preocupados, mas depois não lhes com não lhes conferimos ferramentas para que se possam efectivamente defender. Acho tudo isto muito estranho.
Por isso, estou ainda mais preocupada; já estava, na altura em que não tinham maioria parlamentar, porque, atenção, que a LAPP passou na mesma, mesmo sem a maioria parlamentar, com a abstenção também muito estranha de alguns grupos parlamentares, porque, se calhar, pensavam que conseguiam discutir isto e, entretanto, tudo mudou.
Nesta matéria, acho que é preferível precaver o desaire, porque voltar atrás em más decisões é sempre possível, mas é pior, porque já lançámos uma série de consequências sobre aquilo que está mal.
Quando estamos a dizer isto, nós não estamos a dizer isto porque nos apetece, é porque, realmente, isto é um perigo e era bom que as pessoas olhassem para isto e ouvissem mais os interlocutores judiciários, advogados, procuradores, juízes, funcionários judiciais, solicitadores, agentes de execução, porque todos eles precisam de ser ouvidos. Todos eles fazem parte do sistema jurídico e aquilo que às vezes sentimos é que as pessoas que legislam – e respeitando, naturalmente, esse poder legislativo que não se confunde com o nosso – ouvem, mas parece que não ouvem, porque nós fazemos os pareceres – aliás, esta casa tem, desde que eu tomei posse, uma ampla contribuição de pareceres legislativos, também todos eles dados em 10 dias, que é outra coisa que é fabulosa, e muitas vezes aquilo que verificamos é que as leis são aprovadas antes do parecer chegar uns 10 dias e isto é uma coisa que nos causa alguma perplexidade. Se querem realmente ouvir as pessoas, tem de haver tempo para as ouvir e o processo legislativo, pese embora a urgência que certas matérias têm, tem de ser também uma coisa pensada e, se calhar, é porque não é pensada e não é reflectido que temos tantas situações complicada em termos legislativos, ao ponto de chegarmos ao limite de ter de corrigir leis que ainda nem sequer foram publicadas.