Exterminate All the Brutes, de Raoul Peck: o racismo, modos de usar
Exterminate All the Brutes, de Raoul Peck: o racismo, modos de usar
Na nova minissérie documental da HBO, Raoul Peck debruça-se sobre as origens do racismo, traçando a história da humanidade a partir de uma premissa de ocupação territorial, presente desde a era dos Descobrimentos.
“Não é de informação que carecemos. O que nos falta é a coragem para compreender o que sabemos e tirarmos conclusões.” Quando em 1992 o sueco Sven Lindqvist (1932-2019) escreveu estas palavras no seu livro “Exterminem Todas as Bestas”, pairava na sua cabeça uma fotografia que vira do cenário dantesco que os soldados britânicos encontraram no campo de concentração nazi de Buchenwald no fim da Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Vinte e nove anos depois, Raoul Peck estabelece relação entre as ideias introduzidas por Hitler e o Partido Nazi que deram origem ao Holocausto com as que, assentes em premissas de dominação e de supremacia branca, enformaram séculos de colonialismo europeu.
Civilização, colonização, extermínio: no olhar do realizador de “I Am Not Your Negro”, documentário de 2016 que adaptava um romance inacabado de James Baldwin, estas três palavras definem a História da humanidade, em especial a do processo de ocidentalização que ocorreu em vários partes do globo. Em registo documental, o haitiano encara com frontalidade a capacidade de desconstruir e até mesmo de colocar em causa conceitos teóricos que ao longo dos tempos foram ganhando cunho nas sociedades ocidentais.
Por detrás desta minissérie que acabou de chegar à HBO esteve um longo processo de investigação arquivística e documental, que sustenta várias cenas de recriação ficcional de eventos históricos de diferentes períodos que vão pontuando a narrativa. Escritas por Peck, essas mesmas cenas ajudam a criar um enredo em que realidade e ficção estão entrelaçadas. Para todos os protagonistas desses acontecimentos, que viajam na História das Cruzadas do século XII até à presidência de Donald Trump, escolheu o actor Josh Hartnett (“Pearl Harbor”, “Cercados – Black Hawk Down”).
Os mitos que caem por terra
Na série dividida em quatro partes, Peck, como narrador, defende a ideia de que “não existem factos alternativos”. Alega que não pretende cancelar uma cultura ou uma História que não renega, mas que antes pretende “compreender”. Para isso, escolhe dar voz àqueles que não a tiveram. Aqueles cujas vidas foram apagadas dos livros e manuais escolares, que hoje nos fazem levantar questões de representatividade.
E é a partir de cenas de filmes como “Moloch” (Alexander Sokurov), “The Alamo” (John Wayne), “Aguirre” (Wener Herzog), “Shoah” (Claude Lanzmann) ou “Apocalypse Now” (Francis Ford Copolla), em que “Exterminate all the Brutes” demonstra a visão enviesada criada num contexto audiovisual e cinematográfico profundamente americanizado, mas vai mais além.
No caso americano, foca-se no esclavagismo e no tráfico de escravos negros a partir da Costa do Ouro em África, mas no genocídio perpetrado pelos colonos europeus contra os povos ameríndios. Lembra aliás como esse fenómeno está na fundação dos Estados Unidos da América como os conhecemos hoje. E interroga-nos sobre os mitos que ao longo dos tempos funcionaram como justificação para a violência perpetrada com determinados povos. Por exemplo, o mito da terra prometida ou o mais importante de todos: o da “Doutrina da Descoberta”, sobre a qual brancos europeus, em especial portugueses, espanhóis, ingleses e holandeses, se apoderaram de terras que dividiram entre si, dando aso às suas pretensas de exploração económica de territórios habitados por outros povos.
A história contada pelos “vencidos”
Além da obra de Lindqvist que lhe dá o título, “Exterminate All The Brutes” inspira-se ainda em outras duas obras: “An Indigenous Peoples’ History of the United States”, de Roxanne Dunbar-Ortiz, e “Silencing the Past”, de Michel-Rolph Trouillot. A esses autores faz questão de atribuir a co-autoria da série. Sem eles, não teria a mesma visão de mundo.
Fugindo da visão eurocêntrica que tem moldado e dominado o pensamento académico, Peck pretende elucidar-nos sobre a relação indissociável entre o imperialismo do passado e o capitalismo dos dias de hoje, que de igual forma implicam a existência de um explorador.
Mesmo pesando o tom grave com que Peck nos relata muitas destas histórias, o haitiano consegue também ser irónico e manter um humor negro inato – o segundo episódio intitula-se “Who the F*** Is Columbus?”.
Numa cena de outro episódio, um padre negro depara-se com um grupo de esclavagistas, também eles negros, a conduzir um grupo de crianças brancas pela floresta a caminho de serem vendidas aos seus futuros proprietários. E Peck interpela-nos, questiona-nos: consideraremos as imagens ficcionais de escravos brancos como mais transgressivas ou perturbadoras do que as imagens de escravos negros, que tantas vezes vimos representadas sob diferentes prismas? No fim de contas, “Exterminate All The Brutes” mantém do início ao fim um efeito de espelho, questionando o espectador acerca da sua própria condição.
“A neutralidade não é uma opção”
Também Peck se olha ao espelho. Também o realizador de 67 anos conta a sua história familiar no seu próprio enquadramento, como exercício de auto-análise, mas que também lhe serve de exemplo: “Sou um imigrante de um país de merda, a neutralidade não é uma opção.”
Nas suas quatros horas de duração, a conclusão de “Exterminate All the Brutes” acaba por ser relativamente simples: não é conhecimento que nos falta. Os factos dos casos que nos relata são inegáveis e facilmente compreendemos como as evidências apontam para uma visão que é sintomática também do momento presente. Daí que nos obrigue permanentemente a olhar para o está a acontecer à nossa volta. Manifestações de grupos neo-nazis e de extrema-direita, em que imperam a violência e teses de invasores que roubam empregos e que perturbam o status quo das “sociedades brancas”.
Peck considera como tem sido “lucrativo negar ou suprimir tal conhecimento”, mesmo que factualmente os Estados Unidos da América sejam exemplo primário de um território que na sua origem não pertencia a estes povos. “A história é o fruto do poder”, sugere, demonstrando como o medo criou condições para este confronto, que ultrapassa lógicas étnico-raciais. Não esquecendo nunca que embora a História esteja sempre presente, a nossa memória é selectiva, o que ajuda a remeter certas franjas da sociedade ao silêncio. Neste caso, esse silêncio é audível, ecoa no tempo que vivemos e naquele que nos espera.
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