Estado contrata segurança privada fora da lei

O Estado é dos principais clientes das empresas de segurança privada que se apresentam nos concursos públicos com preços com prejuízo. A Autoridade para as Condições do Trabalho reconheceu que o dumping implica a exploração dos trabalhadores e a fuga aos impostos e recomendou a fixação de preços mínimos, mas a Autoridade da Concorrência pediu a revogação da recomendação da ACT por violação das regras da concorrência.

A venda de serviços com prejuízo, o chamado dumping económico, é punido por lei. Porém, é uma prática comum em muitas empresas de segurança privada. O estranho é que, segundo a Associação de Empresas Privadas (AES), muitos dos seus clientes pertencem ao sector público que, por regra, contrata sempre pelo preço mais baixo. Essas entidades contratantes sabem (por “omissão negligente”, considera a PSP) que o dumping é feito à custa de excesso de horas de serviço, trabalho suplementar não remunerado, descanso compensatório não gozado e não pago, trabalho suplementar, quando pago, não remunerado conforme o contrato colectivo de trabalho (CCT) e, também, fugas às obrigações fiscais, parafiscais e laborais.

Para o presidente da AES, o mercado está viciado. “Só há livre concorrência entre empresas que cumprem a lei. Não há livre concorrência se as pessoas jogarem com regras distintas”, afirmou ao NOVO Rogério Alves.

Em questão está o facto de que quem cumpre as regras perde os concursos. “Neste caso, o crime compensa”, lamentou.

A situação é conhecida e admitida inclusive pelo Ministério da Administração Interna (MAI). No Relatório Anual da Segurança Privada de 2021 (o de 2022 ainda não foi aprovado) pode ler-se que “a contenção de custos e investimentos por parte das empresas contratantes continuou a propiciar o aproveitamento das condições adversas por parte de um leque (já conhecido) de empresas, nomeadamente na adopção de práticas de preços predatórios, com consequente dumping económico e social. Consequentemente, acentuou-se ainda mais a degradação dos preços no mercado da segurança”.

Recuando um pouco mais, também a Autoridade para as Condições do Trabalho (ACT), em 2012, calculou os custos mínimos directos com o trabalho – salário, férias, feriados, subsídios, trabalho nocturno, subsídio de alimentação – e emitiu uma recomendação com preços mínimos abaixo dos quais nenhuma empresa deveria aceitar propostas a concurso.

Curiosamente, pouco tempo depois, a Autoridade da Concorrência, mesmo reconhecendo que a recomendação visava a “prevenção de ilegalidades em matéria laboral e outras conexas”, veio defender a sua revogação, “por a mesma configurar uma medida de política pública com impacto nos níveis de concorrência nos mercados da prestação dos serviços de segurança e vigilância”.

Passados 11 anos, a AES apresentou no Conselho de Segurança Privada uma amostra de 100 concursos públicos, concluídos, “com valores que não possibilitam fazer face aos custos directos relacionados com o factor trabalho”. Segundo Rogério Alves, alguns dos valores eram mais baixos do que a referência da ACT de 2012.

O negócio da segurança privada movimenta cerca de 950 milhões de euros por ano e, segundo a ACT, o sector público representa cerca de 40% dos clientes.

“A lei proíbe a venda com prejuízo”, diz Rogério Alves. Mas, lembra, quer o MAI quer a ACT admitem que o Estado contrata fora da lei. “Há um sentimento de impunidade em muitas das empresas de segurança privada”, diz.