Ao contrário do que possa parecer, este círculo vicioso não começou em Fevereiro. Ayn Rand sintetiza o problema numa formulação especialmente feliz: podemos evitar a realidade, mas não podemos evitar as consequências de evitar a realidade. Tentando fintar a realidade, os decisores esqueceram-se de que, como explica Thomas Sowell, não existem soluções sem contrapartidas. Chegou a hora das contrapartidas, ou seja, das consequências.
Mas a questão é mais profunda: esta é uma crise, há muito anunciada, de afastamento entre governantes e governados, de legitimidade e representatividade. Como os coletes amarelos franceses ou o comboio da liberdade canadiano, é a revolta dos trabalhadores, da gente comum, contra os diktats de uma elite, urbana e afluente, tida por distante. É preciso perceber que quem não sabe bem como chegar ao fim do mês tenderá a estar menos preocupado com o fim do mundo. E que os custos da transição “urgente e necessária” afectam mais uns do que outros.
Por cá, tudo chega com atraso, mas chega. E o que espanta é a solidão dos muito poucos que resistem ao Estado, que não protege crianças sinalizadas, mas que se acha no direito de anular o direito dos pais à educação dos filhos com base em estapafúrdia argumentação. Que aprova com quatro e cinco negativas, mas ameaça reter alunos de excelência por não se exporem a conteúdos puramente ideológicos e, em alguns casos, fracos ou descabidos. Que quer educar para a cidadania, mas faz braço-de-ferro com quem reivindica direitos fundamentais. A pobreza moral e cultural revela-se neste deserto em que, à direita por inércia e cobardia e, à esquerda, por determinação ideológica, se sacrifica quem nos dá, e aos nossos filhos, exemplo de responsabilidade e coragem cívicas.
Só que esta decisão não vem proibir o aborto, mas dizer que a Constituição não se pronuncia sobre um direito fundamental ao aborto. Por isso, o poder de decisão nessa matéria deve ser devolvido ao povo e aos seus representantes eleitos. A maioria dos juízes honraram aquilo a que se comprometeram (interpretar e defender a Constituição), e o resultado – neste caso – é, de facto, democrático. Que várias vozes, algumas conhecedoras do constitucionalismo americano, embarquem na emoção fácil e não percebam, ou finjam não perceber, o que está em causa, mostra bem como nos tornámos profundamente facciosos. E o facciosismo polariza, alimenta a demonização do outro, a “caricaturização” dos seus motivos. Acontece dos dois lados da barricada mas, nestes dias, são os progressistas – beneficiários de maior tolerância – que nos brindam com motins, ameaças, assédios e patéticos cancelamentos. Nestes dias percebemos que a crise da democracia liberal é inevitável e agravar-se-á. Resta saber se é irreversível.
A direita é vitoriosa. Um PP com maioria absoluta e um Vox que mantém a tendência, ainda que modesta, de crescimento. A esquerda, nas suas diferentes variantes, e o Cidadãos são os grandes derrotados.
Foi o que aconteceu quando mostrei aos meus filhos a “Pietà” de Miguel Ângelo, a “Escola de Atenas” de Rafael, as esculturas de Bernini. Quando lhes contei a história de Rómulo e Remo e da loba que os resgatou (na mitologia romana, como na tradição cristã, há inveja, fratricídios e rios onde espreita a salvação: é a natureza humana, que não muda). Quando andei com eles sob o ocre e a luz de Roma (que rivaliza com a de Lisboa), os levei a almoçar ao familiar Borgho Pio, a jantar ao sempre boémio Trastevere, a passear na Piazza Navona e à loja de brinquedos onde, há 30 anos, também eu fiquei maravilhada. Foi o que senti quando rezámos junto do túmulo de São Pedro e de São João Paulo II.