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AUTOR

Miguel Granja

user4044@novopt.pt


Um conto de duas famílias

E, em bom rigor, não entenderemos nada de essencial acerca da polémica em torno do caso dos alunos de Famalicão e da família Mesquita Guimarães se não tivermos presente que se trata, antes de tudo, de uma clivagem abissal entre dois tipos de famílias portuguesas: as famílias que se servem do Estado e as famílias que servem o Estado. Nas primeiras cabem as dinastias cesarianas que crescem e se multiplicam biblicamente no ventre fecundo do governo Costa, as jovens deputadas que se orgulham de nunca terem tido empregos regulares “sem ser na junta ou na câmara” e/ou as jovens ex-deputadas nomeadas directoras de museus da resistência antifascista, tendo como principal competência científica para a museologia serem militantes de partidos de museu (para estas foi até inventada pelos Squealers do regime, como justificação para a nomeação, a categoria familiar do “herdeiro político”); nas segundas cabem os pagadores de impostos que sustentam as primeiras e, entre essas, a família Mesquita Guimarães, de Famalicão.

A saúde, a mulher e o corpo: três Lázaros ressuscitados pelo aborto

A primeira ressurreição, a da saúde pública, ainda ontem, diante do sistemático falhanço no serviço elementar prestado às grávidas (os grávidos, por seu lado, não parecem ter queixas, o que prova bem como o privilégio patriarcal impera ainda no mundo da gravidez), não merecia qualquer manifestação de indignação e solidariedade; apenas, quando muito, um respeitoso acriticismo, porque quem critica o colapso do SNS, sabemos bem, ou quer privatizá-lo ou quer acabar com ele – ao contrário de quem lhe tece louvores, que vai acabando com ele enquanto recorre ao privado. E essa ignomínia, que nos desculpem as grávidas que perdem os bebés, os doentes que morrem numa lista de espera e os cidadãos sem médico de família, não admitiremos neste país. Isto não é a América selvagem, onde as pessoas são deixadas a morrer sem atendimento médico por não terem dinheiro. Isto é o Portugal civilizado, onde as pessoas são deixadas a morrer sem atendimento médico de forma totalmente gratuita. O avanço e o retrocesso civilizacionais, ao fim e ao cabo, distinguem-se precisamente nestes detalhes decisivos que escapam aos espíritos vulgares.

SNS: embuste de governantes, musa de poetas, calvário de utentes

O problema, crónico e sistémico, nem sequer se limita apenas aos seres humanos que estão a chegar ao mundo: os que já cá estão não merecem acudimento mais expedito. Já no início do ano, o cirurgião cardiotorácico Miguel Sousa Uva alertava para o facto de existirem mais de 1500 doentes em lista de espera para cirurgia cardíaca, ultrapassando em 80% dos casos o tempo máximo clinicamente aceitável: “Acho que temos de reflectir como podemos corrigir este drama, porque os doentes não só morrem — nós, regularmente, telefonamos ao doente para o convocar e respondem ‘o meu pai já faleceu’ — como sofrem e chegam pior à cirurgia.” O meu pai já faleceu.

Antiocidentalismo, a doença infantil do ocidentocentrismo

Sendo uma inequívoca censura à pretensão de superioridade cultural ocidental, poucos gestos são, no entanto, tão caracteristicamente ocidentais quanto o de Montaigne. Dir-se-ia até que em cada ocidental habita um Montaigne em estado de prontidão para interceder a favor de canibais remotos que jamais solicitaram qualquer intercessão. A autocrítica cultural faz parte do ADN ocidental e a sua expressão superlativa, o antiocidentalismo, é quase tão velha como o próprio Ocidente. O antiocidentalismo é não apenas uma invenção como uma tradição tipicamente ocidental. E a sua doença infantil.

Da emergencialização da normalidade à normalização da emergência

O estado de excepção, a ser alguma coisa, é a estranha autorização legal daquilo mesmo que o direito proíbe; é a estranha aplicação legal de uma desaplicação legal: é, para enfatizar o paradoxo, a aplicação da sua própria desaplicação. E exactamente por isto, por ser, no limite do ordenamento legal, a legalização da sua própria suspensão, o estado de excepção deve ser (ser e dever-ser também se emaranham aqui) um instrumento jurídico (se é possível designar como jurídico um instrumento que suspende o próprio juris) absolutamente excepcional. Exactamente por se situar simultaneamente dentro e fora do direito, e cuja indeterminação topológica faz dele um direito que representa uma ameaça para os direitos, o estado de excepção jamais deve ser normalizado (no duplo sentido de se tornar normal e de se tornar norma).

Elon Musk e o 25 de Abril de 2022 de 1974 de 1933

Entre espantados e espantalhos, foi possível assistir ao espanto indignado dos mesmos a quem, ainda há pouco, a censura ao New York Post por parte do mesmo Twitter e em plena campanha eleitoral para a Presidência dos Estados Unidos (configurando, desde logo, uma clara ingerência no regular funcionamento do processo democrático e, ao mesmo tempo, uma clara agressão ao princípio da liberdade de imprensa) não motivou qualquer espanto. Sem espanto, a Federação Internacional de Jornalistas, que se manteve servilmente muda sobre esse episódio de ataque à liberdade de imprensa com motivações descaradamente político-partidárias (a única coisa mais eloquente do que uma declaração pública é uma omissão pública), apressou-se a condenar a aquisição do Twitter por parte de Elon Musk, asseverando que esta, sim, e não aquela, representa uma clara ameaça à liberdade de imprensa (na campânula orwelliana em que vive, alheada, grande parte da imprensa actual, a liberdade de imprensa é assegurada pela censura, e não pela liberdade).

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