Certamente já ouviu falar da “regra dos cinco segundos” – o popular conceito de higiene alimentar que indica uma janela temporal dentro da qual a ingestão de um alimento, após queda ou descarte, é considerada segura. De origem incerta, este conceito foi já refutado pela comunidade científica, que confirma a possibilidade de contaminação dentro desse intervalo de tempo, tornando a ingestão do alimento potencialmente prejudicial.

Mais remota e menos difundida é a nova regra dos dez segundos. A mesma nasceu no Tribunal de Justiça de Roma, na semana passada, quando este decidiu que um toque não consentido, dirigido a uma aluna menor, por parte de um funcionário escolar de 66 anos, se afigurou “demasiado breve” para constituir crime de agressão sexual. Nas palavras do magistrado, para que pudesse haver uma condenação, o toque inapropriado deveria ter tido a duração mínima de dez segundos.

O episódio ocorreu em abril de 2022, envolvendo uma aluna e um funcionário de uma escola Secundária de Roma. A vítima, que se dirigia para uma aula, subia um lance de escadas quando sentiu as suas calças serem puxadas para baixo e, de seguida, uma mão nas suas nádegas, por dentro da roupa interior. Quando a aluna se apercebeu do sucedido e confrontou o funcionário, este disse-lhe apenas: “Amor, sabes que estava a brincar”. No seguimento do incidente, a estudante, acompanhada dos tutores legais, dirigiu-se às autoridades e denunciou o ocorrido. O arguido, chamado a prestar declarações, admitiu ter apalpado a vítima sem o seu consentimento, frisando novamente que se tratava apenas de uma “brincadeira”.

Desde que o veredicto se tornou conhecido, a população italiana tem recorrido às redes sociais para expressar indignação e revolta perante a inusitada sentença. Para o efeito, alguns usuários criaram a hashtag #10secondi, filmando-se a si mesmos em situações (não verídicas) de assédio, com o intuito de demonstrar o quão extensa (e, na maior parte dos casos, irrealista) é a janela temporal exigida pelo magistrado. Tais vídeos, que têm provocado desconforto em quem os vê, visam passar a mensagem de que não são necessários dez segundos para que a situação representada seja extremamente desconcertante do ponto de vista psicológico.

Assiste-se ao surgimento de uma nova regra silenciosa, que poderá vir a ter relevância enquanto precedente jurisprudencial no julgamento de futuros casos que apresentem contornos semelhantes. Seria de esperar, tratando-se de uma sentença judicial e de um caso que versa sobre uma clara violação da integridade física e psíquica de uma menor, que existisse algum tipo de suporte – científico ou legal – a este veredicto. Porém, apenas algumas horas de investigação chegam para constatar, por parte da comunidade de psicólogos, a ausência de acordo quanto a uma janela temporal mínima para que um evento possa ser considerado traumático.

Por definição, são traumáticas as situações que “ameaçam de forma significativa a segurança e o bem-estar físico ou psicológico” (Ordem dos Psicólogos Portugueses). A Ordem dos Psicólogos Portugueses diz ainda que este tipo de eventos são acompanhados de sentimentos de choque, susto, ameaça, humilhação, vergonha e ausência de poder ou controlo. Nada é dito acerca de janelas temporais necessárias ao surgimento de um trauma. Nesse sentido e, presume-se, na posse de toda esta informação, o tribunal decide, deliberada e conscientemente, considerar “não culpado” o indivíduo que provocou, na jovem vítima, as sensações acabadas de enumerar, argumentando que o toque não consentido, apesar de inapropriado e censurável, foi “breve”. Também os artigos do Código Penal Italiano, que versam sobre a agressão sexual, são omissos quanto à exigência de janelas temporais a ser preenchidas. É pertinente afirmar que não estamos perante um caso de inimputabilidade do arguido, o que ajudaria a perceber o sentido da decisão, ainda que, em todo o caso, fosse indispensável facultar apoio psicológico à vítima.

É de frisar que não estamos perante uma sentença isolada. Esta não é primeira vez que a justiça italiana decide, com recurso a argumentação profundamente insólita, a favor dos arguidos acusados de violência sexual. Em 2017, um tribunal italiano afirmou acreditar no depoimento de dois homens acusados de violação, que diziam estar inocentes, dado que a vítima era “demasiado masculina” para que pudessem ter sentido qualquer tipo de atração sexual.

Desde o seu surgimento – e sobretudo na Europa Ocidental –, a lei tem evoluído segundo a conceção de um Estado de Direito. Tal evolução tem vindo a pautar-se pela eliminação progressiva de quaisquer vestígios de arbitrariedade. A lei deve ser clara, coesa e previsível, para que as sentenças possam seguir o mesmo caminho. Nesse sentido, o que dizer de decisões como esta e das repercussões que facilmente se lhe anteveem?

A justiça italiana falhou a uma jovem que, com apenas 17 anos e no local onde efetuava o seu percurso académico, foi confrontada com a terrível realização de que o seu corpo não lhe pertencia por inteiro. A mesma jovem, um ano após a ocorrência, enfrentou a inércia e a imprevisibilidade da Justiça, a quem pediu auxílio. Que dizer do estado psíquico dos pais da jovem, que confiaram no Direito para condenar o agressor da filha e que, por sua vez, foram confrontados com a total ausência de responsabilização do mesmo? Que dizer, ainda, do total descrédito e desconfiança no Direito para proteger as vítimas de agressão sexual, que com este veredicto se agravará?

Desde a sua criação, o propósito do Direito passa por garantir a heterotutela dos direitos, liberdades e garantias dos seus destinatários, dispensando-os da sua autotutela. O que acontece quando este, de forma arbitrária e grosseira, falha? Por mais que tentemos resistir, é tentador perguntar se o tribunal que ilibou o funcionário de 66 anos mostraria a mesma benevolência aos pais da menor, caso decidissem fazer justiça – devidamente cronometrada – pelas próprias mãos. Ou será que a exigência de janelas temporais só se coloca quando estamos perante uma realidade que tende a ser desvalorizada?

Mais do que o medo de uma possível retaliação, o principal fator que se coloca entre as vítimas de agressão sexual e a justiça é o receio do descrédito. No presente caso, o tribunal afirmou tratar-se de um depoimento credível. Ainda assim, decidiu não condenar o arguido. Entre o descrédito e a desvalorização, qual dos dois provocará uma sensação de maior impotência nas vítimas violência sexual?

O reconhecimento da seriedade das agressões sexuais e da gravidade das suas repercussões na comunidade é uma batalha longa e difícil, na qual o Direito e a Justiça se encontram munidos das ferramentas para serem verdadeiros aliados. Urge acabar com a impunidade dos agressores e contribuir para um sentimento de segurança entre as potenciais vítimas. O Tribunal de Justiça de Roma veio relembrar-nos de que as prioridades são outras.