Casper Semenya é uma atleta sul africana e atual bicampeã olímpica a 800 metros. Apesar de campeã, Semenya trava uma complexa discuta jurídica no Tribunal Europeu dos Direitos Humanos para poder contestar uma decisão da World Athletics que a impede de participar nos Jogos Olímpicos deste ano em Tóquio. Tudo porque Semenya sofre de hiperandrogenismo, uma condição biológica que lhe eleva a produção de testosterona para níveis acima do que é considerado normal nas mulheres. Para a Associação que regula o atletismo mundial, esta condição biológica confere a Semenya uma vantagem competitiva que torna a sua participação injusta face às restantes competidoras, exigindo que seja medicada no sentido da normalização dos seus índices hormonais. O argumento é simples. Para que a competição possa ser justa e verdadeira não podem existir vencedores antecipados e todos os atletas devem participar em condições de igualdade. De outra forma, não é Desporto.
Na semana passada, e a propósito da nomeação de um jovem ex-assessor político para um dos mais elevados cargos da Segurança Social do país, João Bilhim, anterior presidente da CReSAP, órgão responsável pela instrução dos concursos públicos para Recrutamento e Seleção para a Administração Pública, veio criticar a utilização abusiva de um mecanismo que se traduz numa óbvia e injusta vantagem competitiva quando se “compete na corrida” para o acesso aos altos cargos de liderança do Estado. Este mecanismo chama-se “Regime de Substituição” e tem sido frequentemente usado pelos decisores políticos para nomear transitoriamente pessoas da sua confiança para o exercício de cargos que aguardam a tramitação dos respetivos processos de concursos públicos, frequentemente mal planeados e lançados de forma tardia. Segundo Bilhim estamos perante uma prática de Tirocínio, que confere ao nomeado uma vantagem competitiva ilegítima por permitir adquirir experiência e valorização curricular únicas que reforçam, “a meio da competição”, a sua posição comparativa face aos demais candidatos no concurso público.
Confesso que não fui insensível às palavras de João Bilhim. Eu próprio já o tinha sentido. Há alguns anos tive conhecimento que a CReSAP tinha aberto um concurso publico para recrutamento para um alto e prestigiado cargo da Administração Publica. Apesar de nunca ter tido vínculo laboral à Administração Pública, excluindo no exercício de cargos públicos eleitos, o apelo do cargo e o cumprimento de todos os requisitos exigidos motivaram a minha candidatura ao concurso. Depois um complexo e demorado processo, que incluiu o preenchimento de densos e exaustivos questionários de aptidão curricular e entrevistas pessoais, foi com legitima expetativa e serenidade que aguardei os resultados do concurso. Ainda o processo não estava concluído e publicitado e já a decisão corria pelos Jornais. O governo tinha escolhido para o cargo a mesma pessoa que já ocupava o cargo em Regime de Substituição, por sinal uma ex-membro do próprio gabinete ministerial. No dia seguinte veio a confirmação e a desilusão. Juntamente com a nomeada, eu tinha sido um dos 3 selecionados pela CReSAP para a short-list a propor ao governo. Não pondo em causa as competência e aptidões da pessoa escolhida, que naturalmente respeito, confesso que senti que o concurso já tinha à partida um vencedor antecipado. A vantagem competitiva era óbvia, seriam muito poucos os que poderiam competir com quem já ocupava interinamente o cargo, e até tinha a confiança política direta do decisor público que tinha o poder da decisão final. Naturalmente, se o soubesse à partida nunca me teria candidatado. Senti-me como um totó ingenuamente aliciado a participar numa espécie de embuste que legitimava um concurso público que, tal como à mulher de César, tinha de ser e parecer ser isento.
Mas há outro e mais importante aspeto que me deixou intrigado.
Pensei em todos aqueles que, com mérito, competência e dedicação optaram, qual espírito de missão, por fazer carreira profissional na Administração Pública. Até onde poderão aspirar? Que credibilidade darão aos concursos da CReSAP? Quantos deles acreditam que existem sempre vencedores antecipados? Como se sentem quando vêm os lugares de maior responsabilidade serem sistematicamente ocupados por pessoas de nomeação política com currículos profissionais inferiores aos que durante anos mostraram capacidade e acumularam conhecimento e experiência em lugares de liderança intermédia? Como pode o Estado ambicionar reter talento e recrutar os melhores se não gerar confiança de que a progressão profissional apenas depende dos méritos intrínsecos individuais e não será prejudicada por conjunturas político-partidárias?
Sem esta confiança, desincentiva-se o esforço empreendedor, vulgariza-se a exigência individual, e contamina-se uma cultura de desinteresse e conformismo que torna o Estado pesado, caro e ineficiente. Perde a Administração Publica e perde o país. Adaptando uma famosa citação de Benjamin Franklin “se acha que a competência é cara, experimente a incompetência”.
Mas será que não é legitimo existirem lugares de confiança e nomeação política no Estado? Claro que é. Faz sentido e, em doses moderadas, são mesmo necessários e adequados para o exercício de determinadas funções públicas. A solução até pode ser simples. Como em muitas outras matérias, para resolver este dilema basta existir Transparência e Equidade. É o que muitas vezes tem faltado com a utilização excessiva do mecanismo do “Regime de Substituição”.
Os lugares de nomeação política deveriam estar tipificados na lei e sujeitos a um regime jurídico próprio que, entre outros, determinasse os respetivos poderes, responsabilidades e duração de mandato. Para os demais cargos da Administração Pública apenas deveria vigorar o princípio de progressão profissional assente no acesso universal e no escrutínio de mérito. Nestes casos, eventuais vantagens competitivas individuais resultantes de decisões políticas circunstanciais deveriam ser previamente conhecidas, publicitadas e descontadas ab início do procedimento. Só assim todos poderão competir de forma justa e equitativa. Só assim se promove uma competição saudável pela melhoria da qualidade da Administração Pública. Só assim evitaremos que a CReSAP seja coorganizadora de uma espécie de SuperLiga onde apenas jogam quem tem bons amigos. E isso não é Smart.
#istonãoésmart