Eis que, depois do êxito mundial que é o beijo francês, chega finalmente aos quatro cantos do globo, com direito a abertura de telejornais em toda a parte do planeta – já há duas semanas –, o beijo espanhol. Chega, portanto, com estrondo, com aquele salero de nuestros hermanos. Olé! Bem diferente da profunda elegância universal do ósculo parisiense. Já dá para perguntar, e então, para quando o beijo à portuguesa?! É que, com esta capacidade de disseminação viral, só mesmo a covid. Ou então a guerra na Ucrânia. Adiante.

Rubiales esteve mal. Se a sua atitude geral é boçal e nada afrancesada, no momento em causa excedeu-se muito, pisou a linha, cartão amarelo. O seu comportamento (antes, durante e depois) parece desadequado e merecedor de esclarecimentos, e até de uma eventual sanção. Sublinhe-se “parece” porque não há uma investigação que, por exemplo, lance luz sobre o tipo de relação que tinha com Hermoso antes do chocho. Esse histórico pode mudar, como é evidente, o enquadramento dos acontecimentos no dia da vitória espanhola. Enfatize-se “eventual” porque as imagens dos segundos em causa (a linguagem corporal), bem como de alturas posteriores, como no balneário e no autocarro, são muito ambivalentes, revelam drásticas alterações de perceção e conduta da parte da jogadora, e assim, sem mais, não permitem chegar a uma conclusão sólida.

Isto é elementar. Logo, a fogueira inquisitória que se montou desde então, a par da obsessão mediática, não são apenas desproporcionais. São fascismo. Há que lutar contra a esclerosada e iníqua “coutada do macho latino”, mas condenações e até execuções públicas e sumárias serão sempre anticulturais.

Não há progresso que nos valha. Esta reação tão assanhada e duradoura faz temer o pior. Dá a ideia de que agenda woke e do politicamente correto abocanhou o tema, espremendo-o até a última gota, com capacidade de penetração internacional e mostrando assim a sua força bruta. Máquina debulhadora. Já a maioria dos órgãos de comunicação social há muito que foi capturada – literalmente comprada até – pelos donos e senhores dessa mesma agenda, alinhada na parada e batendo pala em total sincronia. De resto, esses mesmos media há muito que passaram a ser veículos de desinformação, manipulação e opressão das populações, alimentados pelas últimas técnicas de psicologia de ponta que, também ela, se deixou engolir pelos poderes fácticos. Aliás, como quase toda a ciência, configurando uma perigosa e colossal convergência de fatores daninhos, numa autêntica tempestade perfeita. É do olho deste furacão que brota o unanimismo burro, o justicialismo sanguinário, os apedrejamentos, as condenações à morte públicas. Antes em piras e pelourinhos, agora nas redes sociais e nas televisões: os assassinatos continuam. Genocídios, se necessário for.

E se os órgãos de comunicação social passaram a ser meras caixas de ressonância, esta chacina na praça central encerra ainda piores notícias. É possível que a nobre causa da paridade entre homens e mulheres esteja a ser instrumentalizada. Se o desporto, que deve ser – só pode ser – a arena do mérito e do talento, tem demasiadas nódoas por condutas machistas e misóginas, se a luta contra a violência sexual sobre as mulheres é uma causa nobre, fica o amargo (de boca) de que se está, afinal, a usar essa causa em nome de uma crise política. Ou seja, fica a suspeita de que esta cartilha da verdade absoluta foi enfiada, em primeiro lugar, pela goela abaixo das próprias campeãs espanholas que, de início brincaram com o pico e, depois de levarem com a lavagem cerebral, viram-se forçadas a mudar de opinião, tendo sido desapossadas até dos seus próprios sentimentos e crenças espontâneos. E esbulhadas do direito à celebração da vitória, um momento singular e irrepetível. As atletas parecem ter sido manipuladas em nome de um putativo combate à manipulação das mulheres.

Enfim. É chato que seja um tipo execrável como o Rubiales a transformar-se num símbolo vivo da exigência do pensamento crítico e da necessidade imperiosa da dúvida sistemática. Mas é a vida. Pela boca morre o peixe.