Victoria Belim: “A voz da Ucrânia não estava a ser ouvida. A sua história não estava a ser compreendida”

O livro “A Casa dos Galos” nasceu de uma tentativa de compreensão da história e da identidade ucraniana, mas acabou por ser, também, uma jornada de redescoberta íntima feita pela jornalista Victoria Belim sobre o passado da sua família, que vive nos momentos que marcaram o país. Ao NOVO, diz que conhecer e preservar o passado da Ucrânia é fundamental para saber mais sobre o seu presente.

Em 2014, a jornalista Victoria Belim já tinha vivido a maior parte da sua vida fora da nativa Ucrânia. Os seus pais saíram da então União Soviética quando tinha 15 anos e emigraram para os Estados Unidos. Mais tarde, Victoria regressou à Europa para trabalhar em Bruxelas. A vontade de redescobrir o seu país e saber mais sobre a identidade ucraniana levou-a querer voltar à Ucrânia. O momento desse retorno não podia ter sido mais significativo, numa altura em que a Rússia anexou a Crimeia e separatistas pró-russos declararam a independência das repúblicas de Donetsk e de Lugansk. Foi neste contexto que Victoria Belim procurou desvendar o passado da sua família e dessa forma também conhecer melhor o passado da Ucrânia, porque, como afirma, “compreender a história desempenha um grande papel na mudança de perspectivas”.

Dessa jornada de (auto)descoberta nasceu o livro “A Casa dos Galos - A História de uma Família Ucraniana”, no qual Victoria Belim trabalhou durante anos e que acabou de escrever antes da Rússia invadir a Ucrânia, no dia 24 de Fevereiro de 2022. O livro foi publicado pela Porto Editora em Portugal no passado mês de Abril, e a escritora passou pelo nosso país recentemente.

Em entrevista ao NOVO, Victoria Belim explicou que entre as várias razões que a levaram a escrever este livro houve uma que se destacou: a possibilidade de dar a conhecer a história da Ucrânia. “Senti que ouvíamos tanto sobre a Ucrânia, mas a voz da Ucrânia não estava a ser ouvida e a sua história não estava a ser compreendida. Queria realmente escrever um livro de história. Essa era a ideia original, mas sou uma cientista política, não sou uma historiadora e quando comecei a fazer pesquisa para o projecto descobri que a minha família tinha muitas histórias fascinantes e que isso tinha de ser escrito, pois algumas destas histórias não eram conhecidas, nem no seio da minha família. Era importante capturá-las, pois à medida que as gerações passam e as pessoas morrem todas as histórias são esquecidas. No entanto, aquilo que experienciamos hoje com a guerra são apenas os ecos daquele passado, daquela história que têm de ser processados e compreendidos”, diz.

Embora a obra parta da premissa da investigação da autora às suas raízes familiares, a identidade ucraniana acaba por ter um papel essencial. “A identidade ucraniana, com toda a sua complexidade, é uma parte central deste livro. Penso que a história ucraniana afecta realmente a identidade ucraniana. Os ucranianos definem-se em termos da luta pela independência. Em diferentes momentos da história a sua independência foi ameaçada.”

Medo e nostalgia soviéticos

Entre os desafios que encontrou ao investigar o desaparecimento do seu tio-avô nos anos 30 do século XX incluem-se enfrentar a relutância da sua família. “A história é muito trágica e dolorosa. Acho que era por isso que a minha avó e outras pessoas na minha família não tinham muito interesse que eu começasse a desenterrar o passado e tentasse redescobrir estas histórias antigas. Para eles até era uma actividade perigosa”, referiu. Esse receio não deve ser de estranhar num país que viveu durante décadas sob a opressão e o controlo soviético. Esse medo ainda era palpável em 2014. “O medo que formou perdura. As pessoas têm medo destas organizações, têm medo daquilo que outros podem descobrir sobre elas”, partilhou.

Ao mesmo tempo que se mantém este receio, há outro fenómeno que continua a existir e também está ligado ao período da União Soviética. Uma nostalgia soviética que “está profundamente enraizada”. No entanto, isso está a mudar. O conflito com a Rússia tem contribuído para isso. “Com a guerra sinto que as pessoas estão a questionar esse passado soviético, porque a guerra fez muitas pessoas perceberem que o passado soviético teve muitas consequências negativas e que essa marca ainda permanece na Ucrânia.”

“Brutal despertar”

Se em 2014 a resposta do Ocidente à agressão russa em território ucraniano não foi tão célere, o mesmo não se pode dizer relativamente à invasão de 2022. Questionada sobre o que mudou no espaço destes oito anos, Victoria Belim frisou que “2014 foi a primeira vez que os líderes europeus viram como o sistema político russo opera, incluindo a máquina de propaganda política russa”. “Como cientista política estudei a propaganda russa e na altura vi tudo a funcionar, todas as técnicas, e as pessoas na Europa e nos Estados Unidos a caírem nisso. Acho que desde então há, definitivamente, um maior entendimento sobre a forma como funciona. Penso também que a invasão foi feita sob argumentos tão falsos que nenhuma tentativa de obscurecer a verdade podia obscurecer o facto de que era uma tentativa de se apoderarem de terras”, vincou. Além disso, a escritora também considera que a invasão teve o condão de lembrar a Europa central e do leste que “não podem tomar as fronteiras como garantidas”, uma vez que “há sempre alguém mais forte que está disposto a desafiá-los”. “Estes eventos do ano passado foram um brutal despertar”, realçou.

Victoria Belim não consegue prever um final para o actual conflito. Se por um lado tem esperança que acabe o “mais rapidamente possível”, por outro lado sabe que “ambos os países podem suportar uma guerra prolongada”, nomeadamente a Rússia.

Artigo originalmente publicado na edição do NOVO de 27 de Maio

Ler mais