Maria da Graça Carvalho: “A Península Ibérica, tem de exigir [de interligações para energia à Europa]”

A Europa tem atravessado crises sucessivas, com efeitos em diferentes sectores, nomeadamente o da energia. Em entrevista ao NOVO, a eurodeputada Maria da Graça Carvalho diz que a União Europeia aprendeu com as respostas, e que isso é visível, por exemplo, na rapidez das decisões, ainda que os inícios dos processos tenham sido titubeantes. “A Europa, com hesitações iniciais, saiu unida e com soluções”, diz. Mas há ainda o que fazer, nomeadamente na energia e na interligação das redes da Península Ibérica com o resto da Europa.

Tem acompanhado a resposta institucional europeia às crises, primeiro da pandemia de Covid-19, agora das consequências da guerra provocada pela invasão russa da Ucrânia. Como avalia a resposta dada?

Nós tivemos uma sucessão de crises, começando pela pandemia, e, depois, com a invasão da Ucrânia pela Rússia, que trouxe graves consequências para a Europa em vários aspectos, mas em que o principal talvez seja a segurança no abastecimento de energia. E, a seguir, estamos numa crise que se soma à anterior de reagir a um proteccionismo crescente, nomeadamente dos Estados Unidos, com uma lei de diminuição da inflação que não é mais do que um grande subsídio às grandes empresas e proteccionismo.

A Europa, na primeira crise, da pandemia, teve um período inicial com alguma incerteza, mas relativamente curta, e o Parlamento Europeu teve um papel muito importante, porque, imediatamente, exigimos que a Comissão Europeia respondesse de uma forma rápida, sem burocracia. Lembro-me de, em Janeiro, [quando] ainda não era considerada uma pandemia, de alertar a Comissão de que era essencial um financiamento grande a desenvolvimentos que já estavam na calha, de novas tecnologias, do MRNA, que depois iria dar origem à vacina que foi uma das grandes soluções; que era preciso ter procedimentos rápidos, para que os investigadores se juntassem à volta daquela tecnologia; que houvesse também uma colaboração com outros países fora da Europa com o objectivo de preparar uma vacina; e houve essa união a nível da investigação científica. É muito interessante ver que o conhecimento para a solução desta primeira crise veio da Europa, do projecto europeu – de que eu tenho uma grande honra de ter sido relatora – do Horizonte 2020, que estava a financiar uma tecnologia completamente inovadora, que não era para a Covid-19, porque não existia, era até para desenvolver uma vacina contra o cancro, e depois é essa tecnologia que rapidamente começam a aplicar ao Covid-19 e daí sai toda esta geração de vacinas. Portanto, na ciência e inovação, a Europa agiu bem e a população percebeu a importância de se investir em ciência e inovação e de se investir, por vezes, em áreas de que não se vê a utilidade imediata, mas que de futuro terá novos conhecimentos, que levam sempre a novas aplicações e estão lá para quando são necessários.

Depois, pedimos – e aí também houve hesitação de início – que o mercado interno funcionasse, porque, se se lembram, houve vários países que tiveram tendência para se fechar, não deixar passar mercadorias, e o comissário que tem responsabilidade do mercado interno, o comissário [Thierry] Breton, foi muito firme em manter o mercado interno e em obrigar à livre circulação, e o passo seguinte, também liderado por Breton, foi a compra conjunta de muitos dos equipamentos que foram essenciais, desde as máscaras, mas, principalmente, das vacinas. Esta operação de compra de vacinas foi essencial para países como Portugal terem acesso ao mesmo tempo de países como a Bélgica. Aliás, até uns dias antes. Eu vacinei-me na Bélgica, mas em Portugal, com a minha idade, algumas pessoas tiveram acesso à vacina antes, e isso nunca teria acontecido se nós não fizéssemos parte deste bloco. Nem quero imaginar o que era uma corrida [às vacinas], porque os países com mais poder económico teriam conseguido obter primeiro do que outros países médios e pequenos. Portanto, a Europa, com hesitações iniciais, saiu unida e com soluções, e, tanto na investigação científica, como na compra conjunta, como no mercado interno, percebemos a importância de estar juntos.

Na segunda crise – quando começámos a ver uma pequenina luz ao fundo do túnel da Covid, tivemos a guerra –, a Europa também tem tido uma posição, com pequenas excepções, de união, de união a defender a Ucrânia, de perceber que a Ucrânia está a defender os nossos valores, os valores europeus, os valores da liberdade e da democracia, e, num outro ponto, nas medidas para fazer face às consequências que essa guerra tem na Europa, em que a principal é o preço da energia. Houve uma subida exponencial do preço do gás, que é transportado, na maior parte dos casos, por gasoduto, que demora muitos anos a construir, e, por erro do passado da Europa, de alguns países europeus, e, temos de o dizer, nomeadamente da Alemanha, houve uma grande concentração na importação do gás russo, por razões económicas, porque é vantajoso, era mais barato, porque havia trocas comerciais de grande dimensão.

Uma das três componentes da primeira estratégia de energia e clima, que saiu em 2008, em que eu tive o privilégio de trabalhar, ainda com o presidente [Durão] Barroso, era a segurança do abastecimento, e foi, na verdade, aquela que não se efectivou, porque não houve diversificação; lá dizia-se que tínhamos de diversificar os países de origem, os países de trânsito, e houve uma grande concentração na importação do gás russo. Mas o que é facto é que a Europa unida conseguiu, em pouco tempo, diminuir drasticamente as importações da Rússia; neste momento, temos menos de 10%, tínhamos 40% de dependência em gás da Rússia, e países como a Alemanha, neste momento, não estão a importar, e estavam tão dependentes do Estado russo. Mostraram uma capacidade de execução, mãos na massa, à maneira alemã, e, neste momento, [a Alemanha] já não importa, não estão a importar gás da Rússia.

Houve uma série de medidas, em conjunto. Existe uma plataforma para, de uma forma voluntária, fazer-se a compra de gás em conjunto, houve a construção de terminais de gás natural liquefeito, e, de uma forma rápida, conseguiu-se fazer face ao primeiro impacto dos preços da energia; e não tivemos um Inverno tão mau como poderia ter sido, tivemos sorte, e, por outro lado, conseguiu-se, no Verão, armazenar gás – a presidente da Comissão, [Ursula] von der Leyen, tinha pedido para 80% das reservas ficarem cheias até Novembro, conseguiu-se; houve um esforço conjunto de se armazenar gás para o Inverno, de diversificar a compra de gás, de usar gás natural liquefeito de outros fornecedores – Estados Unidos, Noruega, países do Golfo –, e, portanto, houve em houve uma grande acção conjunta na área da energia.

Claro que ainda há bastante a fazer e uma das áreas é completar o mercado interno da energia e um dos pontos que está a prejudicar toda a Europa é, exactamente, a Península Ibérica não estar ligada ao resto da Europa ou estar deficientemente ligada ao resto da Europa, porque nós temos vários terminais de gás natural liquefeito – oito, um em Portugal e o resto em Espanha – e o facto de não estarmos ligados prejudica o transporte para o centro da Europa. Também as ligações eléctricas. Lembro-me que estive no Governo de 2003 a 2005, tivemos duas cimeiras com Espanha, nas duas assinámos, com fotografia, acordos para fazermos as interligações; no Governo do dr. Pedro Passos Coelho também se esteve aí, nesse caso muito concreto, com financiamento europeu para fazermos as interligações; neste Governo já houve várias cerimónias, até com a presidente da Comissão; ainda agora tive uma reunião com a comissária da Energia em que voltei a perguntar se havia financiamento para as ligações eléctricas. Continuamos a ter notícias de que há problemas, essencialmente na França, para construir esse mercado interno.

Falta vontade política?

Tem havido, ao longo dos anos, em relação às interligações, uma oposição da França. A França tem o seu problema resolvido com a energia nuclear, portanto, não tem grande interesse, mas tem de haver, do lado da Península Ibérica, um exigir. Há financiamento europeu e nós, no Parlamento Europeu, temos feito o que podemos, com cartas, falando publicamente, até conseguimos trazer os colegas franceses a assinar as cartas a pedir as interligações.

A ideia que fica é que o projecto só foi interessante quando os preços dos combustíveis e o gás natural dispararam; passou a ser menos interessante à medida que o preço foi descendo.

É o governar para o imediato, não é ter visão.

Ainda faltam pontos para acabar, mas há uma capacidade [da Europa] de reagir em conjunto na área da energia.

Neste momento, como consequência de uma inflação grande, ficou cada vez mais notória a falta de matérias-primas, a [falta de] independência, não só energética, mas também nas matérias-primas críticas para a transição energética que estamos a fazer. Há um crescer do proteccionismo dos Estados Unidos e uma agressividade muito grande por parte da China, e a Europa tem, neste momento, que ter uma posição forte de defesa da sua capacidade industrial.

Eu já há muito tempo que chamo a atenção para isto. Ainda antes destas crises, fui relatora na Comissão do Mercado Interno da Estratégia Industrial da Europa e não acho – há colegas no Parlamento Europeu que têm uma visão diferente – mas eu não sou favorável a que a Europa se feche; a Europa continua ainda a ser um grande exportador a nível mundial, portanto, deve ser uma economia aberta, mas uma economia que investe muito, para já, em inovação, em competências, ter pessoas competentes, ter as infra-estruturas modernas necessárias, ter a capacidade de fazer – nós não podemos deixar de ter a capacidade de fazer, não é por ser mais barato fazer noutro lado que não se faz aqui.

O custo de fazer noutro lado ficou demonstrado agora, com as duas crises.

Não fazem as contas todas, não têm uma visão sistémica do problema; é preciso ter a visão do sistema e ter em conta todos os custos e todos os fluxos para aquele sistema, e aí chega-se à conclusão de que o preço de fazer não sei onde, se calhar, não é mais barato do que fazer aqui, porque há tudo o resto e as questões têm de ser todas consideradas.

Ler mais