Ensaio. O fim da tentação imperial americana

Depois de duas décadas de considerável derramamento de sangue e desgaste do tesouro, Washington prepara-se para abandonar a região sem obter ganhos palpáveis. Apesar de tudo, trata-se da “menos má” entre as péssimas opções que confrontam os decisores americanos.



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Vinte anos depois dos atentados de 11 de Setembro de 2001, o Presidente Joe Biden ordenou a retirada plena do contingente militar americano que desde então se encontra no Afeganistão a prosseguir a longa guerra contra o terrorismo. Há muito convencido da impossibilidade de erguer um Afeganistão funcional e democrático, Biden não hesitou em pôr termo à mais longa e ingrata guerra da história americana. Em breve, os talibãs - contando com o apoio da China, do Paquistão e do Irão, os adversários regionais dos Estados Unidos - regressarão ao poder para impor a Washington um revés estratégico tão significativo quanto inevitável.

Os ataques perpetuados pela Al-Qaeda - os primeiros em solo americano desde a investida japonesa contra Pearl Harbor - levaram George W. Bush a proclamar uma guerra global contra o terrorismo. Na sequência imediata dos atentados, Bush exigiu que o mulá Omar, o líder talibã que concedia santuário à Al-Qaeda, lhe entregasse Osama bin Laden. Recusada a exigência, os Estados Unidos montaram uma coligação internacional que, devidamente autorizada pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas, conduziu, a partir de 7 de Outubro de 2001, bombardeamentos aéreos contra os talibãs e os campos de treino da Al-Qaeda situados em solo afegão. Um mês depois, a 13 de Novembro, a Aliança do Norte, apoiada no terreno por forças especiais americanas, apodera-se de Cabul.

Cumprida a missão militar, os EUA comprometem-se com a reconstrução nacional (nation-building) do Afeganistão. A estratégia englobava duas vertentes: a primeira, com a criação de um Estado funcional capaz de impor a sua autoridade em todo o país e, a segunda, com a concessão de ajudas económicas e financeiras para viabilizar a economia nacional e assim cativar “os corações e as mentes” da população. Passados poucos anos, com Hamid Karzai instalado no palácio presidencial, a estratégia revelava sinais inequívocos de insucesso. Assistia-se ao regresso de uma economia assente no narcotráfico, dominado por senhores da guerra que bloqueavam a autoridade do Estado central. Esta incapacidade americana de fazer nation-building abriu caminho ao regresso dos talibãs, militarmente activos a partir dos seus santuários nas zonas tribais pastós do vizinho Paquistão.

Dilema americano

Em Outubro de 2002, Barack Obama demarca-se do apoio generalizado à guerra no Iraque. Numa manifestação realizada em Chicago para protestar contra a preparação da investida militar, caracteriza-a como uma “guerra prematura e estúpida”, uma vez que Saddam Hussein não representava uma ameaça directa à segurança dos Estados Unidos. Acrescentava então que não era um pacifista e que apoiava as operações no Afeganistão, descritas como uma guerra justa destinada a dizimar a rede terrorista responsável pelo 11 de Setembro de 2001. Anos depois, no Verão de 2008, já como candidato do Partido Democrata à Presidência dos Estados Unidos, afirmaria que a sua prioridade em política externa seria a condução da guerra no Afeganistão.

As administrações Bush e Obama enfrentaram um colossal dilema: como poderiam promover uma agenda de democratização em países autocráticos estrategicamente vitais para os Estados Unidos? Isto é, como conciliar o imperativo de apoiar “ditadores amigos” no curto prazo com o compromisso de promover a democratização num horizonte mais longo? O dilema gerava outro paradoxo, pois a vitória dos aiatolas iranianos, em 1979, demonstrara que a democratização de regimes autocráticos, mesmo que fosse uma tarefa exequível, acarretava o perigo do surgimento de governos profundamente hostis aos interesses americanos. Eis o dilema que Obama volta a enfrentar em 2011, durante a Primavera Árabe.

Um dos responsáveis pela forever war no Afeganistão, Obama chegou a acreditar que a guerra podia ser ganha. Quando assume a Presidência destaca 17 mil soldados para o país, elevando as forças americanas para os 70 mil efectivos. Mais tarde, no Outono de 2009, à medida que os talibãs consolidavam as suas posições, o Pentágono traça uma estratégia ambiciosa para conquistar “os corações e as mentes” da população através da construção de escolas, estradas e outras infra-estruturas. Embora tenha aprovado o envio de soldados adicionais para o Afeganistão, Obama comete o erro de estabelecer um deadline para a missão, anunciando que as tropas seriam retiradas a partir de Julho de 2011. Neste sentido, os talibãs apenas teriam de esperar até à data da anunciada retirada para regressarem ao poder.

A Casa Branca viu-se obrigada a decidir se o Afeganistão voltava a ser transformado num refúgio para a Al-Qaeda ou, alternativamente, se podia ser construída uma democracia mais ou menos funcional. No final do seu primeiro mandato, Obama abandona a democratização e abraça o conceito de um “Afeganistão suficientemente bom”, pautado pelo objectivo de neutralizar os terroristas islâmicos e impedir o regresso dos talibãs ao poder. Na realidade, tratava-se de uma abordagem que fixava o statu quo e, assim, excluía tanto a vitória como a derrota militar.

Ao longo do tempo, o conflito altera a forma como o Presidente equaciona o uso da força militar, confirma o seu cepticismo quanto aos limites do intervencionismo externo e reforça a sua desconfiança relativamente a lideres estrangeiros “não confiáveis”. São justamente estas desconfianças que explicam a sua relutância em usar a força na Síria e na Líbia em 2011. A sua visão cautelosa da política externa distancia-o gradualmente de Bill Clinton e de George W. Bush, que acreditavam que a América era o país “indispensável” à construção de uma ordem internacional mais pacífica.

O fracasso imperial

À medida que o Estado Islâmico emerge como uma ameaça global, Barack Obama muda de rumo, numa altura em que o exército afegão, treinado pelos americanos, sofre pesadas baixas. Em Agosto de 2015 torna-se claro que a estratégia de reconstrução nacional até então prosseguida ao longo de 14 anos de guerra - e que consumira milhares de milhões de dólares e 2 mil vidas americanas - jamais faria do Afeganistão uma democracia capaz de assegurar a sua própria defesa. Mas as amarras que ligavam Washington a Cabul não poderiam ser cortadas, pois as operações antiterroristas teriam de ser continuadas. Por muito que Obama quisesse abandonar o Afeganistão, os Estados Unidos não poderiam permitir que o país voltasse a ser um santuário para o terrorismo islâmico.

Como é sobejamente conhecido, Donald Trump foi um crítico feroz do intervencionismo externo e, em particular, das guerras que se seguiram ao 11 de Setembro. Expressava a saturação generalizada da opinião pública relativamente a uma guerra remota, longe da realidade quotidiana dos cidadãos e cujos objectivos tinham deixado de ser claros. Durante o seu mandato, se bem que nem sempre de forma coerente, insistiu na retirada de forças do Afeganistão, mas os seus esforços foram sistematicamente boicotados pelas chefias militares instaladas no Pentágono. Não obstante as resistências, nos derradeiros dias da sua presidência anuncia o fim do compromisso militar afegão.

Biden seguiu o rumo traçado pelo seu antecessor, demonstrando que o esforço militar deixara de reunir o apoio das elites políticas. Ao mesmo tempo, no terreno, os talibãs reforçam as suas posições militares, infligindo pesadas derrotas a um frágil governo que agora apenas espera pelo seu colapso final. Neste novo quadro, os talibãs são abraçados pela China, o Paquistão e o Irão, um eixo que, nos anos mais recentes, tem vindo a aumentar a sua influência na região à medida que diminui a presença dos Estados Unidos. Depois de duas décadas de considerável derramamento de sangue e desgaste do tesouro, Washington prepara-se para abandonar a região sem obter ganhos palpáveis. Apesar de tudo, trata-se da “menos má” entre as péssimas opções que confrontam os decisores americanos.

Em última análise, a retirada do Afeganistão encerra um ciclo de política externa marcado pela convicção de que os Estados Unidos poderiam construir um mundo melhor e mais pacífico. Este projecto imperial ruiu porque, em larga medida, a democracia americana não suporta os sacrifícios inerentes às ocupações militares prolongadas, como sucedeu no Japão e na Alemanha depois de 1945. E muito menos suporta as “guerras sujas” prosseguidas na mesma altura nas Filipinas e na Malásia contra grupos insurgentes. Os Presidentes Bush e Obama, tal como os sucessores de Theodore Roosevelt, descobriram que a tentação imperial americana exige sacrifícios que a generalidade da população repudia. Quanto ao Afeganistão, será entregue à sua sorte.

Artigo originalmente publicado na edição impressa do NOVO nas bancas esta sexta-feira, 13 de Agosto.

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