A figura do provedor de Justiça foi inovação introduzida na Constituição de 1976. Mas a eficácia desta instituição unipessoal depende muito das características de quem ocupa o cargo. Neste quase meio século houve figuras que por ali passaram sem deixar rasto. Não é o caso de Maria Lúcia da Conceição Abrantes Amaral, de 65 anos, provedora desde Novembro de 2017. Primeira mulher neste cargo, tem-se pronunciado várias vezes sobre diversos assuntos, sem recear controvérsia ou incompreensão do poder político. É a única forma de desempenhar com zelo e manifesta utilidade o papel atribuído a quem ocupa o 12.º lugar na lista de precedências das altas entidades públicas, tal como determina o protocolo do Estado.
Professora catedrática de Direito Constitucional da Universidade Nova de Lisboa e anterior juíza do Tribunal Constitucional (2007-16), de que chegou a ser vice-presidente, Maria Lúcia Amaral esteve em foco nos últimos dias ao criticar o famigerado artigo 6.º da pomposa Carta Portuguesa de Direitos Humanos na Era Digital. Se este artigo fosse aplicado, corríamos o sério risco de ver reintroduzida a censura oficial neste país que a suportou durante décadas. Desta vez, de forma sonsa, mediante “selos de qualidade” atribuídos por “entidades fidedignas dotadas do estatuto de utilidade pública”, a pretexto do combate à desinformação.
Num pedido de apreciação da constitucionalidade desta lei - proposta pelo PS, secundada pelo PSD e votada em 2021 por unanimidade na Assembleia da República, indiferente às vozes críticas que já soavam -, Lúcia Amaral alerta para a aparente “violação dos princípios da reserva de lei e da proporcionalidade na restrição da liberdade de expressão e informação”. Lembrando esta evidência que passou despercebida a deputados habituados a votarem sem ler o que aprovam: “A principal obrigação dos intervenientes estatais é abster-se de interferir e censurar, e garantir um ambiente favorável a um debate público inclusivo e pluralista.” Apesar de o Tribunal Constitucional ainda não se ter pronunciado, há já sinais de que o PS está, enfim, disposto a rever o diploma.
A provedora agiu aqui em consonância com o Presidente da República, que já havia solicitado um parecer do TC sobre o tema. É sinal acrescido de que os direitos, liberdades e garantias estão salvaguardados por quem tem a missão institucional de zelar por eles. Na linha de outros recentes alertas de Lúcia Amaral - sobre a desprotecção social de trabalhadores independentes, a falta de apoio do Estado a pessoas forçadas ao isolamento profiláctico durante a pandemia ou a forma como são recolhidos e conservados os metadados pelas operadoras de telecomunicações.
Não por acaso, o número de participações de cidadãos à actual provedora de Justiça tem sido o mais elevado desde a entrada em funcionamento deste órgão independente, eleito pela Assembleia da República mas, por definição, imune a pressões políticas. Indiciando que o sistema de freios e contrapesos - pedra angular de qualquer democracia liberal - é mais do que mera metáfora entre nós.