Quanto do mar salgado pode ser água para Portugal

A água é um recurso escasso, mas Portugal pode fugir à seca tirando partido do mar. Há antigas centrais da EDP e verbas disponíveis para a tornar potável através da dessalinização. Só falta regular o sector e o domínio hídrico público.

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A praia de São Torpes, em Sines, no litoral alentejano, ficou conhecida pelas suas águas temperadas, aquecidas pela termoeléctrica da EDP. A central a carvão chegou a abastecer um terço da electricidade consumida em Portugal, no início dos anos 90, e foi perdendo peso com o crescimento das energias renováveis, tendo assegurado apenas 4% do consumo eléctrico em 2020, segundo dados da REN. Além disso, houve um aumento da carga fiscal aplicada às centrais a carvão, com o fim da isenção do imposto sobre os produtos petrolíferos (ISP) e a introdução de uma taxa de carbono. Tudo somado, a empresa não conseguia vender a electricidade ao preço que Sines a produzia. Depois houve também o compromisso verde da EDP no seu plano estratégico e a viragem para as energias renováveis. As chaminés fumegaram os últimos vapores no dia 24 de Dezembro de 2020, como que dando uma prenda de Natal às emissões de gases poluentes em Portugal.

Ainda não há um destino para aquelas infra-estruturas, mas há tentativas. Há quem aposte num projecto para a produção de hidrogénio verde, o H2Sines, para consumo nacional e exportação para o norte da Europa. Há, porém, outra hipótese complementar: a de desenvolver na antiga termoeléctrica uma central dessalinizadora. A dessalinização elimina os minerais (maioritariamente, sal) da água do mar mediante processos físicos e químicos para transformar a água salgada em doce ou salobra para consumo humano ou para outras finalidades, como indústria e agricultura, por exemplo.

“Já houve projectos apresentados à EDP para a instalação de uma dessalinizadora”, diz Rui Ferin Cunha, da direcção de controlo de gestão da EDP, destacando que o assunto da dessalinização é acompanhado e estudado pela EDP enquanto alternativa tecnológica para a produção de água e como indústria grande cliente de electricidade, mas esta não tem ainda uma posição tomada sobre a implementação de qualquer projecto. A verdade é que a EDP tem um know-how acumulado nesta área. “Usamos há muito tempo a tecnologia de dessalinização nas centrais termoeléctricas, uma vez que estas necessitam de produzir vapor - seja água do rio ou do mar - para a condensação e o arrefecimento das máquinas que produzem electricidade e não a podem fazer circular sem a tratar. Sem lhe tirar o sal, no caso de vir do mar”, explica Rui Ferin Cunha.

Esta circunstância coloca outra central no rol de interesses de possíveis promotores do negócio privado da dessalinização: a termoeléctrica de Setúbal, localizada na zona industrial da península da Mitrena, a última central térmica convencional e a de maior potência a queimar fuelóleo em Portugal. Esteve 30 anos em funcionamento e chegou a abastecer 25% da população portuguesa no território continental. Ao derrubar as duas chaminés, a empresa criava condições no terreno para viabilizar um novo projecto. Na altura, o Observador noticiou, citando Rui Teixeira, presidente da EDP Produção, que a empresa pretendia receber um projecto sustentável e que ainda não tinha nada definido, mas que gostaria muito que pudesse ser um parque solar. Por enquanto, ainda não é, mas pode ser uma dessalinizadora também.

Infra-estruturas existentes

A dessalinização é um cliente apetitoso para o negócio da EDP, pois a maior fatia do seu custo operacional é a electricidade: 50% da factura. Há, contudo, alguns entraves pertinentes que se prendem com os activos existentes. Alguns pertencem à EDP, outros são licenças e concessões cuja legislação não é clara em atribuir à empresa energética algum direito sobre tais activos.

Segundo Rui Ferin Cunha, o investimento teria de ser de raiz no que respeita a membranas, bombas ou filtros. No entanto, salienta que três aspectos tornam estas infra-estruturas muito atractivas para este negócio: o terreno já tem uso industrial; possui um ponto de interligação com a rede eléctrica - algo fundamental, pois facilita o abastecimento de electricidade à unidade de dessalinização, seja através de produção própria de electricidade com energias renováveis (solar, eólica ou um mix de ambas), seja utilizando a rede pública; por fim, tem uma tomada de água do mar (adutores) já instalada que permite retirar a água e devolvê-la ao mar (emissários).

João Quinhones Levy, professor do Instituto Superior Técnico, afirma que isto representa 30% do investimento, faltando 70% para instalar uma central de dessalinização. No entanto, apesar de ser a favor da dessalinização, defende que em Portugal deveriam existir vários projectos de pequena dimensão ao longo da orla costeira, sem grandes extensões de condutas e com a mais-valia de que a devolução da salmoura ao mar teria impactos menores. “Há 20 anos que assistimos à inércia dos governos nesta matéria. Espanha e Itália chegaram a ser grandes produtores de água dessalinizada a nível mundial, classificando-se em quinto e sétimo lugar. E nós?”, interroga.

Há, contudo, um pequeno-grande senão. Quem pagaria esta água? Quem seriam os off-takers? Eis o dilema que leva promotores a baterem com a porta. Este negócio está nas mãos do Estado. No caso de avançar um investimento privado nas infra-estruturas da EDP, o modelo de negócio teria de ser clarificado, mas, como o sector da água tem uma regulação muito dispersa, seria uma dor de cabeça reunir todos os licenciamentos e encontrar o off-taker. O licenciamento para vender água em alta pressão é exclusivo de algumas entidades, como a Águas de Portugal ou as autarquias. Os interessados na água em quantidade são, essencialmente, a indústria e a agricultura, e a sua participação neste negócio, enquanto investidores privados, não pode suscitar dúvidas que o próprio Estado possa pôr em causa anos mais tarde. O professor do Instituto Superior Técnico é bastante crítico nesta matéria. Na sua opinião, a legislação deveria permitir que um industrial, por exemplo, pudesse fazer a sua própria captação, e não criar gigantes que passem a dominar este sector.

Francisco Ferreira, da associação ambientalista Zero, diz que a principal questão a colocar-se é precisamente quem precisa desta água do ponto de vista de prioridades. Em Sines poderá ser utilizada para o fabrico de hidrogénio verde, por exemplo, mas essa água pode também vir da estação de tratamento (reutilizada) ou do Alqueva, sendo necessário comparar-se custos e prioridades em termos de resiliência e sustentabilidade. “A dessalinização, para nós, via custos energéticos e também pelo impacto ambiental que possa causar, deve ser vista como backup. Mesmo que incorpore todos os custos, a energia utilizada na dessalinização deveria ser canalizada para outras áreas mais importantes. A energia renovável utilizada para a dessalinização pode não ser o uso mais prioritário”, comenta, afirmando ainda que no Algarve está a ser pensada para abastecimento público, numa lógica de segurança de abastecimento. “Deve gerir-se a procura para depois ver se se justifica criar a oferta.”

Porto Santo pioneiro

O que torna viável uma empresa de dessalinização é, além da evolução tecnológica do próprio processo, um custo mais baixo de produção de energia eléctrica. “Com as renováveis, está acessível ao promotor do projecto ser ele mesmo a produzi-la”, afiança o responsável da EDP, explicando que há 20 anos só era possível abastecer uma dessalinizadora com recurso à rede pública ou a grupos geradores muito poluentes. Rui Ferin Cunha garante que um projecto destes só avançaria com energia verde - o que, a priori, elimina um dos senãos da dessalinização, que é a emissão de CO2 (uso das energias fósseis), residindo o outro no facto de que o elevado custo energético seria atenuado.

Mas precisa Portugal da dessalinização? O tema vai ferver em pouca água. O NOVO já noticiou que a água será a guerra do futuro, até porque o país ficará em stresse hídrico. Nas últimas décadas perdeu 20% dos recursos hídricos e vai continuar a perdê-los. Que a água é um dos recursos mais preciosos deveria ser ponto assente. A sua escassez, segundo a ONU, afecta já 40% da população mundial - um alarme que soou e que tem incentivado a procura de soluções. A dessalinização é uma delas. Um estudo elaborado pelos investigadores do Instituto para a Água, Meio Ambiente e Saúde da Universidade das Nações Unidas, em 2019, indicou que no mundo havia 16 mil unidades de dessalinização em operação, distribuídas por 177 países. O primeiro país a adoptar o processo de forma massiva foi a Austrália, seguida pela Arábia Saudita, Kuwait, Catar, Estados Unidos e Espanha - com o impulso das ilhas Canárias e da costa de Alicante e Múrcia, onde as antigas centrais térmicas têm estado a ser substituídas por projectos de dessalinização. Espanha já tem 700 locais em funcionamento, que produzem mais de 4,5 milhões de metros cúbicos de água por dia. Será que Portugal lhe seguirá os passos?

A ilha de Porto Santo, na Região Autónoma da Madeira, criou a primeira dessalinizadora da Europa há 40 anos. O governo nacional pretendia resolver o problema de escassez de água naquela ilha, pelo que investiu numa das primeiras unidades industriais do mundo a utilizar a tecnologia de osmose inversa - em que a água salgada é sujeita a uma pressão elevada e vai passando através de membranas de porosidade decrescente. Os sais ficam para trás e a água torna-se cada vez mais pura e própria para consumo. O senão desta técnica é que as membranas têm de ser substituídas e o custo da energia é elevado para conseguir criar as elevadas pressões de que a osmose inversa precisa.

A unidade em Vila Baleira foi também a primeira a utilizar um sistema de recuperação de energia por turbina Pelton, que se tornou o standard durante cerca de duas décadas, permitindo reduzir os consumos energéticos na ordem dos 35% a 40% e contribuindo para a expansão da tecnologia em todo o mundo. Tem capacidade para produzir 6500 metros cúbicos, chegando a cinco mil habitantes e 20 mil turistas. O custo de água nesta central é de 79 cêntimos por metro cúbico.

O Algarve também está a projectar uma dessalinizadora, com um prazo de conclusão de obra em 2025. Ainda não se sabe a localização. Quanto ao montante que uma dessalinizadora poderia custar na sua capacidade máxima, equivalente às maiores do mundo, rondaria os mil milhões de euros. Contudo, os valores podem oscilar de acordo com a dimensão do projecto e com a pureza da água pretendida. Se for mais salobra, os custos baixam. Pegando nos montantes do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), que dispõe de 200 milhões de euros para mitigar os efeitos do stresse hídrico que já se vive, o Governo prevê aplicar 45 milhões à dessalinizadora algarvia para produzir sete a oito hectómetros cúbicos de água para o consumo humano. Na antiga central de Sines, que tem 300 hectares, este investimento rondaria os 3,4 milhões de euros por hectómetro cúbico - um valor abaixo do projectado para o Algarve devido ao efeito de escala e ao reaproveitamento das infra-estruturas. Quanto ao custo da água dessalinizada, segundo o Governo, ronda entre os 35 a 50 cêntimos por metro cúbico. Porém, há constrangimentos ambientais a ultrapassar.

Impacto ambiental

Um dos problemas que se colocam são os resíduos da dessalinização, ou seja, a salmoura, água residual com uma elevada concentração de sal e poluentes, que em muitos casos é despejada no mar, podendo afectar os ecossistemas. Há projectos, como o sea4value, que pretendem aproveitar os metais presentes no sal - caso do magnésio, gesso, cálcio, potássio, cloro ou lítio - para os vender como subprodutos da extracção do sal. Portugal tem a vantagem de o oceano Atlântico ter fortes correntes, pelo que estudos pormenorizados poderão evitar problemas ambientais. Para João Quinhones Levy, esse problema não se coloca: afinal, o exemplo de Porto Santo é a prova de que é possível criar dessalinizadoras sem prejudicar o ambiente. E há outras oportunidades económicas no uso da salmoura. Pode ser utilizada para produzir energia ou na aquicultura, irrigando espécies tolerantes ao sal - ideias ainda em estudo e que precisam de ser maturadas.

Outro problema levantado no uso desta tecnologia é que a captação de água tem restrições técnicas e de caudal e a velocidade apropriada para não prejudicar a vida marinha. Rui Ferin Cunha é peremptório: “Temos sempre de avaliar o trade-off e ver se os fins justificam os meios”, diz, rematando: “A água é um bem escasso e nem sempre valorizado. Actualmente, o acesso à água em Portugal condiciona o desenvolvimento económico, seja no sector agro-industrial seja na indústria transformadora. A disponibilidade de água tem também um papel no combate às alterações climáticas. Há toda uma reforma e clarificação a fazer no país no sector da água e no domínio publico hídrico para permitir o seu aproveitamento”.

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