Patrícia Mamona: “O meu objectivo máximo é saltar mais um centímetro”

Igualar a melhor marca europeia de 2023 nos Campeonatos Nacionais de Clubes aumentou a confiança de Patrícia Mamona para os Europeus de pista coberta, que vão começar a 2 de Março, em Istambul. Numa entrevista realizada no Centro de Alto Rendimento do Jamor, no sábado passado, na véspera de ser campeã de triplo salto pela décima vez, a atleta de 34 anos falou ao NOVO dos melhores saltos e das dúvidas quanto a terminar a carreira nos Jogos Olímpicos de Paris, aos quais chega como vice-campeã em título. E admitiu querer os 15,02 metros falhados por um centímetro.



Quando está com o seu corpo todo no ar, em direcção à caixa de areia, pensa em alguma coisa além do impacto?

Acho que nem penso muito no impacto. Antigamente, era das coisas em que pensava mais, porque doía - não posso negar que o triplo salto é uma disciplina difícil e em que os atletas sentem bastante o impacto, mas, normalmente, sente-se quando se faz qualquer coisa mal tecnicamente, quando se está aprender ou quando já se vai com expectativa de haver dor. Os meus melhores saltos, em que provavelmente houve mais impacto, foram os saltos em que não senti nada. Fiz tudo bem. Senti-me a flutuar, num flow. Chega-se a um ponto em que já nem se sente. Sente-se que não se sente. E, normalmente, esses são os bons saltos. Durante o salto pode haver todo o tipo de emoções e de sensações, pois depende muito do momento. Se for numa prova de categoria inferior a um Mundial ou a um Europeu, vou estar a pensar em aspectos técnicos. Isso vai fazer com que esteja mais consciente e consiga pensar em coisas muito específicas: o impacto, a minha forma na corrida e a minha forma no ar. Mas, nos melhores saltos, nomeadamente no meu recorde nacional de 15,01 metros, a única sensação foi pensar que dava para mais. Lembro-me de ter saltado os 15,01 e senti que havia margem de progressão, que tinha feito uns erros - não sei quais, pois estava tão envolvida no salto, mas senti que ainda havia mais para dar. Quando vi a marca, foi surpreendente e bom, mas, ao mesmo tempo, senti que ainda tenho muito para dar. Foi um salto que me dá confiança e a esperança de conseguir fazer mais do que 15,01.

Dá para ter noção da marca que vai ter no momento em que faz o último salto?

Acho que não. Tenho de me focar no que tenho de fazer, e é muito difícil focar-me no resultado sem me focar no processo. Quando quero saltar muito, penso no que tenho de fazer - normalmente, visualizo os saltos antes - para deixar fluir o salto e focar-me no ponto infinito, que é ir o mais para a frente possível.

No Europeu de atletismo de 2016, pareceu genuinamente surpreendida quando viu a marca que lhe permitiu passar para a frente.

Agora, já o posso dizer: nesse Europeu fiz no quinto salto um nulo mínimo, por dois centímetros, em que teria feito uma marca de 14 metros e noventa e tais centímetros. E percebi que, afinal, os 15 metros não eram algo assim muito difícil. Já tinha noção de que era capaz, mas não estava ainda no pódio, e por isso tinha de regular a minha chamada e fazer um salto válido, para lutar pelas medalhas. Foi o que fiz. Tive de reduzir um bocadinho a velocidade, fazer com que o salto fosse válido, e quando tive a confirmação da marca, obviamente, fiquei espantada; fui com alguma dificuldade à final e acabei por sair como campeã da Europa. Foi aquele momento com que uma pessoa sonha mas, quando acontece, parece surreal. Quando vi que estava em primeiro lugar fiquei muito feliz, embora ainda tremesse um bocadinho, porque as outras podiam responder.

Lembro-me sobretudo do pulo que deu ao perceber quanto tinha saltado...

Foi a emoção do momento. Ainda por cima, esse dia foi espectacular. Já tinha as notícias de outros atletas que ganharam medalhas e foi a primeira vez que fui campeã da Europa. Por isso, é sempre algo muito especial. E ainda nem sabia que o salto anterior, que foi nulo, tinha sido de 14 metros e noventas. Sabia que podia saltar muito, vi a marca muito perto dos 15 metros e pensei: “Calma, isto é possível.” Depois fiz o salto válido, que tornou realidade ser campeã da Europa. Mais tarde é que me mostraram o vídeo do salto nulo e me disseram que era de 14 metros e noventa e tal. Até consegui-los demorou muitos anos, o que acontece muito no atletismo. Durante o percurso sentia que era melhor atleta do que no passado, mas tive a infelicidade de não conseguir mostrar o meu valor real em nenhuma competição.

O que é algo que, por vezes, acontece a atletas de enorme valor...

Posso falar, por exemplo, da Naide Gomes, que podia ter sido campeã olímpica, mas teve o azar de fazer um nulo, ou dois ou três. Ou seja, sabemos que são atletas dos melhores do mundo mas, por azar, não conseguiram demonstrar o seu valor. Faz parte da carreira de um atleta e temos de viver com isso e, acima de tudo, estar agradecidos pelo processo e ficarmos descansados, porque sabemos que demos o nosso melhor.

O seu treinador, José Uva, além das questões técnicas, também a ajuda na mentalidade necessária para as provas?

Sim, sem dúvida. Tanto o meu treinador como eu evoluímos muito a nível mental, mas também não podemos deixar de ter na equipa quem é profissional nessas áreas. E temos noção de que, por termos uma relação bastante próxima, porque estamos juntos há mais de 22 anos, às vezes, as emoções são mais fortes do que a parte mais consciente. Deixamo-nos muitas vezes levar pelas emoções, o que pode ser bom e, ao mesmo tempo, pode não ser. Por exemplo, hoje em dia, o meu treinador é muito mais calmo nas competições do que no passado. Quando um atleta vê que o próprio treinador está nervoso e não está confiante, também começa a ficar menos confiante, pois sente que a pessoa que devia motivá-lo está a fazer exactamente o oposto. Ou seja, nós os dois tivemos de procurar alguém de fora que ajudasse a trabalhar essas áreas e a sermos mais profissionais nos momentos em que temos de o ser. Durante a competição, as emoções têm de ser deixadas de lado e ele tem de ser só treinador. Mas, assim que acaba, somos outra vez amigos, temos quase que uma relação de pai e filha. Temos de saber gerir as duas coisas.

Existe uma fórmula para o triplo salto perfeito no que toca a velocidade e a posicionamento?

Acho que existe. Temos sempre de prestar atenção à física e à biomecânica, porque são dados factuais, mas vai para além disso. Nesses campeonatos da Europa, a única mudança entre os primeiros três saltos e os últimos três foi a mudança de consciência. A minha confiança aumentou exponencialmente porque, depois de três saltos, comecei a pensar: “Pá, vou ficar aqui outra vez entre as finalistas?... Gostava muito de sair da minha zona de conforto, vamos arriscar um bocadinho.” E a mudança de mindset fez com que saltasse de 13,90 para quase mais um metro. Ou seja, há sempre a parte física, a ciência e algo que, fisicamente, achamos ser o salto perfeito, mas muitas outras variantes afectam esse tal salto perfeito e, se calhar, fazem com que fique ainda mais perfeito. Quanto mais variantes, mais oportunidades temos de saltar mais. Pensar que existe sempre qualquer coisa que se pode melhorar dá-me confiança para continuar a trabalhar e acreditar que o meu limite ainda está bem longe.

Nas finais dos Europeus, Mundiais e Olímpicos está a competir com atletas que têm mais dez, 15 ou 20 centímetros. Isso é uma desvantagem ou também há vantagens em não ter essa altura?

Hoje em dia, já não tem muita vantagem porque, embora esteja a competir contra outras, estou a competir contra mim mesma. Estou a saltar sozinha.

A competir contra os seus limites...

Não é como se fosse um desporto como o judo, em que literalmente se comparam forças e técnicas num momento. Percebi que cada uma tem as suas mais-valias e cada uma tem os seus defeitos. Não estou a dizer que ser baixa seja um defeito...

Mas não é baixa.

Sou em relação a outras triplistas. Desde muito nova, ouvi: “Não vás para o triplo porque não tens as características necessárias.” E, na altura, só queria fazer triplo por gostar da disciplina, mais nada. O facto de gostar muito e de saber que estou a fazer algo de que gosto é motivador, e a motivação ajuda-me a querer mais, mais e mais. Faço o meu percurso querendo mais um centímetro, e não comparando muito com o que as outras fazem, se fazem mais 20 ou 30 centímetros, porque o meu caminho é o meu caminho. Eu e o meu treinador focamo-nos sempre muito nisto: o nosso objectivo máximo é o meu recorde pessoal, e o meu recorde pessoal é saltar mais um centímetro do que no passado. É assim que giro o meu caminho, de que me orgulho muito, porque foram 22 anos, demorou muito tempo, mas foi sempre motivador, sempre um caminho com muita felicidade, por continuar a fazer aquilo de que gosto. Sinto-me como se tivesse 13 anos, porque a minha vida não mudou muito. Houve uma altura em que era muito de comparar, sobretudo em competições como Mundiais de juniores e de sub-23, em que me sentia intimidada logo que entrava na câmara de chamada, porque era só calmeironas, com pernas compridas. Ficava a pensar: “Como é que vou conseguir?...” E depois percebi que tenho muita coisa que se pode trabalhar e que me pode ajudar a saltar longe. Tenho força, tenho capacidade de conhecer bem o meu corpo, o que ajuda a aperfeiçoar a minha técnica, tenho velocidade, que foi uma coisa que melhorámos muito e que fez a diferença - coisas que as outras não têm. Acima de tudo, a parte mental faz muita diferença nas grandes competições. Podes treinar quatro anos, podes estar esses anos todos a fazer mais de 15 metros, e, quando chega a altura, com o estádio cheio, em que tens de fazer a marca que queres, começas a tremer, não consegues controlar as emoções e não consegues demonstrar esse valor. A minha mais-valia é que sou bastante competitiva. Normalmente, supero-me sempre em grandes competições. Quanto mais pressão, melhor para mim, pois aí revela-se o espírito competitivo e a vontade de querer mostrar ao mundo o meu valor e o querer mais. Por isso, hoje em dia, a altura das outras atletas não tem grande significado para mim. Acho que já o provei com a minha performance.

Quando começou, o triplo salto feminino era uma disciplina recente, pois não houve competição oficial para mulheres durante muitos anos. Compreende que isso tenha acontecido?

Acho que teve a ver um pouco com a forma como a sociedade via certas coisas em relação às mulheres. Ainda hoje temos alguns estigmas de coisas que podem ou não podem fazer. Haver mulheres em posições de liderança era algo, se calhar, impensável há 20 anos, pois o estereótipo era estarem em casa a tomar conta dos filhos. E os homens, conhecendo o triplo salto, uma disciplina que tem muito impacto e causa muita dor, provavelmente viam a mulher como muito frágil para o fazer.

Tinha de ser salva dessa dor.

Era só para fortes e guerreiros. Hoje, já se provou o contrário porque, felizmente, temos a Yulimar Rojas [venezuelana que foi campeã olímpica em 2021, à frente de Patrícia Mamona, e é recordista mundial do triplo salto, com 15,74 metros], que saltou mais longe do que os homens. Isso provou que as mulheres têm uma força psicológica, emocional e física que pode ser trabalhada e não tem de ser vista como um defeito. Temos capacidades, embora haja sempre diferenças entre homens e mulheres porque, genericamente, os homens têm hormonas que lhes permitem mais, em termos de força e de aguentar impactos. Mas com trabalho e confiança consegue-se chegar onde se quer. Cada vez mais se dá importância ao factor mental, que influencia muito os resultados físicos.

Noutra entrevista disse que acaba por haver uma dimensão do que faz que é trazer graciosidade a algo muito violento. Pensa muito nisso?

É algo que, para mim, é natural, E percebi-o com o feedback das pessoas, sobretudo quando comecei a ser vista e reconhecida internacionalmente. Diziam sempre que fazia o triplo salto de uma forma tão fácil. E eu pensava, cá por dentro: “Não é nada fácil!” [risos] Depois comecei a prestar atenção e achei engraçado, porque parte da graciosidade é muito natural. É a minha parte feminina englobada no próprio salto, que ainda é visto como algo muito masculino. É como os bailarinos, que fazem coisas espectaculares e, quando estamos a vê-los, é arte. é graciosidade, é belo de se ver. O trabalho por detrás, o sofrimento, o que muscularmente têm de fazer, e que é doloroso, desaparece. Pelo menos, visualmente. Isso é algo fantástico e bastante artístico. E ter a capacidade de o fazer com o triplo salto também é fenomenal.

Nos Mundiais de 2022, quando ficou em oitavo lugar, cheia de dores e com problemas físicos, disse que foi um ponto baixo. Tem noção de que, para os comuns mortais, ser o oitavo melhor do mundo a fazer seja o que for não pode ser considerado um ponto baixo?

Tenho tendência a dizer que foi um ponto baixo porque, em relação à minha progressão, o foi realmente. Mas aprendi muito nessa época. Aprendi muito a conhecer o meu corpo e vi que era mais forte do que pensava. Se me dissessem que saltaria com aquelas dores, provavelmente diria que era impossível. E foi totalmente o contrário, mas também é uma gestão de expectativas pois, quando estou num campeonato do Mundo, a minha expectativa tem de ser enviada lá para cima. Tenho de trabalhar e sentir que se estou lá é porque mereço estar e tenho de lutar pelas medalhas. Vinha da época em que tinha sido vice-campeã olímpica e, obviamente, um oitavo lugar soube a pouco, mas mais tarde percebi que não foi tão mau como pensava. Foi uma das minhas melhores marcas a nível de Mundiais e igualei a minha melhor posição de ranking mundial naquelas condições. Sinto que, se estiver em melhores condições, vou lutar por um melhor lugar. É um misto de sentimentos, mas tenho tendência para ver as coisas menos boas como lições para me deixar na terra e perceber que há coisas que tenho de mudar durante o longo processo e que vão ajudar-me a saltar ainda mais. É algo que faz parte da vida de atleta. Tenho muitos exemplos de atletas que estiveram no topo, tiveram grandes lesões e conseguiram voltar. E vejo-o com alguma naturalidade. Faz parte e, acima de tudo, continuo focada no objectivo, que é fazer melhor do que fiz no passado. É o foco.

Igualou a melhor marca europeia deste ano [14,41 metros] nos Nacionais de Clubes. É o tipo de coisa que é uma injecção de confiança para um atleta?

Para mim, foi. Andava com um problema no joelho, que não era grave mas era impeditivo. Quando estamos a treinar para alta competição, tudo conta, e o facto de não conseguir correr à velocidade máxima faz muita diferença. É a diferença entre ganhar uma medalha e não ganhar uma medalha. Como não tinha ainda saltado durante a época toda, desde Novembro, estava um bocadinho apática porque não sabia se ia estar bem ou se ia estar muito mal. Fui à competição a ver o que iria sair dali, mas o objectivo principal era conseguir dar os oito pontos para o Sporting. Felizmente, correu bem. Deve-se também à experiência que tenho e à confiança em mim e no meu corpo. Quando é algo muito importante, consigo tirar - principalmente com a experiência que tive em 2022 - o melhor de mim. Foi o que aconteceu, e saí bastante confiante e com a sensação de que consigo fazer ainda mais e melhor. Por isso, vou deixar as emoções positivas a marinar e não ter expectativas muito altas, de forma a ficar presa a elas. Como já disse, preciso de ser puxada, e quando penso “isto já está feito”, normalmente, acontece o contrário. Por isso, gosto sempre de pensar que há qualquer coisa que posso fazer para melhorar, e esse vai ser o foco. Mas estou confiante, ao mesmo tempo, porque sei que, pelo menos, isto da lesão no joelho está ultrapassado - não a 100%, mas não é nada impeditivo para saltar muito.

As expectativas quanto a marcas e medalhas devem ser guardadas em segredo?

Acho que sim. Quando mostras muito essa expectativa, o público quer resultados que não dependem só de ti, dependem também dos outros. Se eu disser que o objectivo é conseguir uma medalha olímpica, sei que estou a competir com outras que têm o mesmo objectivo. E eu posso fazer o meu recorde pessoal e, mesmo assim, não conseguir a medalha olímpica. Mas se estiveres a impingir isso muito para o público, o público vai querer isso de ti, e se por alguma razão não conseguires parece que o mundo acaba e não tens valor. Pode acontecer não conseguires e teres feito o melhor salto da tua vida. Mesmo assim, ficas triste, pois o objectivo e a expectativa que tinhas não foram correspondidos. Eu gosto de guardar para mim. Gosto de dar surpresas. Posso contar esta história: numa entrevista, provavelmente dois anos antes dos Jogos Olímpicos, disse que o meu sonho era fazer 15 metros. E várias pessoas disseram que não o devia dizer, pois 15 metros era algo que, provavelmente, não iria conseguir fazer. Ninguém na história de Portugal tinha conseguido, pois 15 metros é para o top de elite. E eu senti-me um bocadinho... [Hesita.]

Espicaçada?

Isso! Mas, sinceramente, achava que conseguia. Então, se calhar, não devo dizer que consigo fazer 15 metros, mas é o sonho de qualquer atleta fazê-los. E a verdade é que, duas semanas antes de partirmos para Tóquio, nas minhas sessões mentais - que passam muito por visualizar a prova e os meus saltos - tinha feito a minha previsão de como iria ser em Tóquio. E é engraçado porque acertei no número de nulos e escrevi a marca que achei que iria fazer na capa da revista GQ em que eu aparecia. Escrevi 15,02 e não mostrei a ninguém. Só o meu treinador mental é que sabia porque, se fosse mostrar aquilo a alguém, iam pensar que era maluca. [risos] Diriam: “Esta rapariga, coitadinha...” Tinha feito o recorde nacional meses antes, no Mónaco, de 14,66 metros, já supostamente a dar o máximo, e agora estava para ali a dizer que iria fazer 15,02 nos Jogos Olímpicos. Falhei por um centímetro, mas também gostei muito de surpreender, principalmente aqueles que me disseram antes que não devia dizer esse tipo de coisas, que não devia sonhar tão alto. Por isso, gosto de deixar um bocadinho aquém, que é para surpreender. Essa surpresa dá um certo charme à competição porque, se conseguíssemos adivinhar tudo, perderia um bocadinho de interesse. Muitos desses momentos, como nos jogos de futebol, têm a ver com suspense. É poder estar bem mas saber que qualquer coisa pode correr mal e não sabemos qual vai ser o resultado. E quando as coisas saem para o nosso lado, a alegria torna-se ainda maior.

Os próximos Jogos Olímpicos, de 2024, são uma meta ou não vê qualquer prazo de validade para a sua carreira?

Já estive a pensar que os Jogos Olímpicos seriam uma meta mas, ao mesmo tempo, sinto que se puser um limite... Quando traço um limite tenho tendência para me regular só para chegar ao limite, e eu quero descobrir o que posso fazer para além do limite. Se eu puser uma meta em 2024, de certa forma, isso vai-me fechar as portas. Neste ano aprendi que tenho de fazer de tudo para descobrir aquilo de que gosto e descobrir os meus limites. Ou para descobrir aquilo que sou capaz de fazer, sabendo que há sempre margem de progressão. Escolher uma data para acabar a minha carreira já aconteceu no passado, mas revelou-se totalmente o oposto. Houve tempos em que o meu sonho era ir aos Jogos Olímpicos, fui aos Jogos Olímpicos, acabei em 13.ª, não fui à final por uns centímetros, e percebi que não era aquilo que me satisfazia. Queria mais. Mudei a minha vida, vim dos Estados Unidos para Portugal, tínhamos quatro anos para tornar realidade o sonho de ser finalista olímpica. Acabou, olhei para o meu treinador e disse-lhe: “Quero mais, quero uma medalha olímpica. Vamos trabalhar mais quatro anos.” E realizou-se. Agora comecei a pensar naqueles 15,01... Temos Paris, e não sei o que vai acontecer em 2024 que me possa mudar o mindset e pensar [entusiasma-se]: “Se calhar, ainda dá para ir para Los Angeles em 2028.” Já tirei da cabeça esta coisa da idade. Antigamente dizia-se que, a partir dos 27 ou 28 anos, no triplo salto, a carreira começava a decrescer. Hoje sinto-me mais enérgica do que nunca, embora tenha algumas lesões - faz parte quando se está a treinar muito no limite -, com uma confiança que não tinha no passado. Porque é que não vou aproveitar isso? Não quero dar uma data final para a minha carreira porque, na altura, não sei se será isso que vou sentir, mas, ao mesmo tempo, estou a pensar que há outras coisas que gostava de ter na minha vida. Gostava de ter filhos e sei que isso vai obrigar a uma paragem para a gravidez.

No mínimo, de um ano...

Mas, depois, vejo o exemplo da Shelly-Ann Fraser-Pryce [velocista jamaicana bicampeã olímpica dos 100 metros], que decidiu ter o filho e acabar a carreira. Depois foi treinar só para voltar a ficar fit, mas estava mais rápida do que nunca, decidiu voltar e está a bater os recordes todos - tudo contrário ao que se pensava que acontece na carreira de uma mulher. Por isso, é melhor deixar o livro aberto, ter 2024 como um objectivo, sem dúvida, mas, ao mesmo tempo, não dizer o que vai acontecer. Limitarmo-nos não ajuda fisicamente nem psicologicamente.

Não tem hesitado em deixar claro que, apesar de ser dos atletas portugueses mais bem remunerados, depende sobretudo de patrocínios e contratos de publicidade. Irrita-a pensar que lhe pagam menos do que a um suplente obscuro de uma equipa de futebol?

O futebol é incomparável, pelo menos no nosso mercado. Eu não sou apologista da igualdade, mas sim da equidade, mas, dentro do atletismo, sabendo do impacto que tenho nas próximas gerações e nas actuais, sinto-me mal se estiver a receber duas vezes menos do que um atleta que sei ser importante para o clube, mas não tem o valor que eu tenho para o clube e o meu impacto na sociedade portuguesa. Já com o futebol, o futebol é uma máquina de fazer dinheiro, é algo que até a mim me comove bastante, uma coisa de emoções, motivadora, e sei o que transmite. É o desporto-rei e faz parte da nossa cultura. Por isso, é muito difícil estar a comparar. Nesses casos, até acho justo, pois aquilo que dão para a sociedade traduz-se no valor monetário do salário dos jogadores. Sei que se trabalhar, eventualmente, vou conseguir chegar a um patamar em que me sinto confortável, e é nisso que estou focada. Agora, se calhar, não, mas lembro-me de que, há uns anos, até a nível de patrocínios, sentia que havia disciplinas muito mais remuneradas do que outras. E o impacto que eu tinha não tinha nada a ver. Lembro-me de fazer um contrato com uma marca, sendo top-10 do mundo no triplo, e ganhava quase três vezes menos do que um top-50 de uma prova de estrada. Mas, depois, percebi que, a nível de marketing, as corridas vendem mais que os saltos porque o público tem tendência em aderir mais a esses eventos. Não se vê pessoal a fazer triplo salto na rua, mas vê-se toda a gente a fazer um pouco de jogging, E precisam de uns ténis para fazer esse tal jogging como deve ser, e não vais ver o público a comprar sapatos de bicos para fazer o triplo salto. Percebo como o mercado funciona e tenho de compreender que ganho menos do que essas pessoas porque o impacto que tenho é, provavelmente, inferior. Tento ser equilibrada, pois há coisas que são justas.

Falando de outro reconhecimento, vê-se como um dos símbolos de Portugal?

Símbolo, não sei. Também não sou uma pessoa que goste de ser idolatrada, mas sinto que parte do que faço tem impacto, principalmente nas novas gerações, e sou muito apologista de que o desporto faz bem a qualquer pessoa. De certa forma, é uma motivação poder dar um bocadinho da minha motivação a alguém, principalmente às gerações mais jovens, que cada vez mais estão presas às redes sociais e não se mexem. Estão a ter problemas que podiam ser facilmente resolvidos com a prática de algum desporto. O número de crianças com depressão tem aumentado exponencialmente e um dos benefícios do desporto é ajudar a pessoa a estar mais confiante no seu corpo por ver que, com o desporto, conquista objectivos. Se eu der um incentivo para fazerem mais desporto, não necessariamente o triplo salto, já fico bastante feliz por isso.

Há alguns anos teve pé e meio no mundo da televisão. É uma carreira que pense seguir no futuro?

Não sei. Acho que as pessoas gostavam muito - pelo menos na minha família, toda a gente me diz que devia experimentar fazer mais coisas. Eu também gostei muito da experiência que tive, principalmente no “Fama Show”, em que o meu grande objectivo era dar a conhecer os atletas olímpicos, pois senti que, quando fui para o Rio 2016, não conhecia metade da equipa portuguesa nem metade dos desportos, e senti-me bastante inculta. E, se me estava a sentir assim, o mesmo acontecia à população portuguesa. Não conheciam os atletas porque os seus desportos não eram divulgados o suficiente. Estava a tentar mostrar aos portugueses que há mais coisas além do futebol. Correu muito bem e vi aquilo como uma porta que pode ser reaberta. Com os meus horários, tornou-se complicado gerir tudo e dediquei-me outra vez a 100% aos treinos. Mas gostei da experiência e é algo que posso voltar a fazer, pois a forma como me receberam foi bastante positiva. Tudo tem o seu tempo. O triplo salto ainda é a minha paixão número um, mas vejo a comunicação como um potencial pós-carreira.

Sendo filha de imigrantes, tendo estado emigrada e tendo família emigrada, vê o futuro em Portugal ou a correr mundo?

Sinceramente, vejo a minha vida em Portugal. Ter estado fora do país fez-me amar Portugal ainda mais. Quando estive nos Estados Unidos, que é um país que agrega muitas culturas, não me senti em casa. Sou uma pessoa que tem de se sentir bem, sobretudo emocional e psicologicamente, e muito disso é sentir que estou no sítio certo. Para mim, Portugal é o sítio certo. Temos os nossos problemas, mas são para serem resolvidos. Neste momento, não me vejo fora de Portugal. Muitos problemas que me levaram a emigrar foram resolvidos. Não tínhamos condições para treinar e fui para os Estados Unidos, onde tinha a papinha toda feita, com material para potencializar o treino que não existia em Portugal. Houve uma altura em que o Nelson Évora foi para Espanha treinar porque não tinha condições e conseguiu ser logo... penso que campeão do Mundo. E ele fez uma crítica: disse que estava a treinar em Espanha porque não havia condições em Portugal. E isso também originou o projecto da nave do Jamor, que acabou por ser construída. Regressei nessa altura, mas ainda havia muitas coisas que não estavam afinadas para ser triplista a 100%. Trouxemos um bocadinho da nossa experiência para Portugal e as coisas vão mudando. Se calhar, não para nós, mas para próximas gerações. Ou seja, esses problemas estão a ser resolvidos, pouco a pouco, e estão a tornar Portugal um centro de desenvolvimento de talentos que, eventualmente, vai dar frutos, com atletas de alta competição e de renome. Este progresso que está a haver em Portugal também me dá motivação extra para continuar aqui. Com calma, as coisas vão progredir. Também podia ter ido para Inglaterra, onde vivem os meus pais, mas só aguento duas semanas porque aquele clima é um bocadinho depressivo e é uma cultura já um pouco consumista a mais para o meu gosto. Tento simplificar a vida ao máximo e fico contente com um café e, quando posso, um pastel de nata. Já em Inglaterra tem de ser tudo finesse e a minha irmã leva-me ao restaurante em que fazem não sei quê com molho não sei quê... [risos] Mas, ao mesmo tempo, não posso fechar as portas. Imagine que tenho uma oferta para trabalhar numa empresa, pois estou a estudar Biomédica, e, normalmente, as grandes empresas de tecnologia não se encontram em Portugal. Se, por alguma razão, acabo o curso e decido ingressar nessa área, também percebo que, se calhar, para haver algum desenvolvimento em biotecnologia ou em biomédica, terei de emigrar. Prefiro estar em Portugal mas, se tiver de ir para fora, também terei portas abertas. Mas sempre com vontade de voltar para Portugal.

Imagina-se a ter intervenção social ou política?

Cada vez mais me pedem para ter algum tipo de intervenção política, porque muito daquilo que vivemos dá para percebermos os problemas que existem, pelo menos a nível de desporto, e temos uma voz bastante importante para conseguir resolver esses problemas. Mas tenho grande dificuldade em levar tudo para a política. Ando a perceber como a sociedade está a evoluir, e há coisas que não têm de ser políticas, porque isso faz com que a sociedade seja ainda mais dividida e existam guerrilhas. Por exemplo, sinto que, num jantar de família, só o facto de os tios e os primos terem uma opinião diferente sobre a eutanásia faz com que se fique com uma relação diferente com aquelas pessoas, porque muitos dos problemas que existem hoje em dia foram politizados. Tenho de ter alguma cautela quando penso em termos mais políticos. Preferia dar conselhos, mostrar a minha experiência e dar a minha opinião sobre certas coisas que têm de mudar. Mas não necessariamente ingressar num partido político, porque também há muitas narrativas com que, provavelmente, não estaria de acordo e teria de representar por ser essa a filosofia do partido. E isso não me ia fazer sentir muito bem.

Agradecimento: Instituto Português do Desporto e Juventude

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